nas locadoras
Quem Somos Nós? (What the Bleep Do We Know?),
de William Arntz, Mark Vicent e Betsy Chase
(EUA, 2005)
por Ilana Feldman

Holismo científico

Jostein Gaarder, filósofo e autor do célebre O Mundo de Sofia, disse, uma vez: “eu não leio mais filosofia, pois todas as questões fundamentais estão sendo discutidas e respondidas pelas ciências, especificamente, pelas neurociências”. Pois a protagonista de Quem somos nós? – interpretada por Marlee Matlin, excelente atriz surda (cuja surdez não é uma questão para filme), ganhadora do Oscar em 1986 por Filhos do Silêncio – é uma espécie de Sofia numa jornada em busca de uma compreensão holístico-científica. Realizado por um trio de diretores, Quem somos nós? parte da física quântica e das neurociências para investigar os meandros de nossa percepção e consciência, incorporando em seu time de entrevistados, além dos físicos e neurocientistas, um teólogo e uma guru que parece ter vindo diretamente de um reino fabular, à la Senhor dos Anéis.

Porém, não se trata apenas de um documentário de entrevistas com autoridades. Quem somos nós? – nas palavras de um dos diretores, um documentário de “iluminação” (enlightenment documentary) – desvia da tradição do documentário informativo/televisivo (apoiado, sobretudo, em uma organização temática que prima pela “neutralidade” formal) para escancarar os procedimentos ficcionais de engajamento do espectador na trama. Como uma espécie de filiação ao documentário social de John Grierson, que defendia o uso da linguagem do espetáculo como ferramenta pedagógica, o filme assenta-se sobre o hibridismo de artifícios narrativos e sensoriais. Mescla um sem número de animações, excessivos efeitos especiais e uma mise-en-scène ficcional com as entrevistas informativas, picotadas para dar corpo a esse projeto de eficiência estética.

Esse jogo bastante interessante, que tenta autonomizar a encenação ficcional sem torná-la mera ilustração do que dizem os cientistas, é também, no plano do conceito, bastante paradoxal. Defendendo a idéia, a partir da física quântica, de que somos nós que produzimos nosso corpo e a realidade a nossa volta – isto é, uma premissa política de responsabilização e de questionamento de nossos valores e crenças -, o filme é filho de seu momento histórico, apoiando-se sobre o paradigma neurocientífico, inevitavelmente reducionista e localizacionista, na medida em que nos descreve como “sujeitos cerebrais”. Sob essa perspectiva, tudo se dá no cérebro e a partir de condicionamentos bioquímicos, o que torna a questão da responsabilidade e da liberdade de ação bastante contraditória, mesmo que, segundo o pensamento quântico, vivamos em um mundo de múltiplas possibilidades e não-fixação. Ao mesmo tempo, a perspectiva quântica abre-se para uma visada imanentista e holística, o que também explica o sucesso do filme dentre grupos místicos e orientalistas.

Essas questões, no entanto, não invalidam o interesse em Quem somos nós? Ao contrário, tornam-no mais complexo, estética e politicamente, na medida em que as bases em que se dão os questionamentos propostos pelo filme são também tão históricas quanto o antigo paradigma questionado. Afinal, sabemos que a ciência não é a Verdade, mas mais uma produção legitimada de valores e crenças amalgamados historicamente. Nesse sentido, é sintomático que a articulação narrativa proposta, que faz dos cientistas entrevistados verdadeiros xamãs, esqueça-se de que tantas teorias sobre o movimento, sobre a percepção e o reconhecimento, sobre a matéria, a memória e o sentimento de que Deus é algo imanente a todas as coisas – enfim, tantas teorias filosóficas, de Heráclito a Espinoza e Bergson – já contribuíram para a tradição que pensa o movimento e a mudança.

Hoje, porém, a filosofia parece não ter qualquer legitimidade e autoridade para pensar os fenômenos da vida e do mundo. E Quem somos nós? pode ser tomado como a evidência audiovisual desse processo de guinada (mística) da tecnociência. Processo que torna um filme-parente como O ponto de mutação (adaptação do livro homônimo por Bernt Capra, EUA, 1990) algo distante anos-luz, tanto em seus termos estéticos - calmaria e conversação à beira-mar - quanto em sua premissa temática, apoiada em uma discussão puramente afetivo-intelectual da física quântica.

Pequeno sucesso de boca-a-boca no circuito de arte brasileiro, e agora no mercado de DVD, o filme faturou em 2004, com pequena campanha de marketing, US$ 12 milhões nos EUA – sendo a quinta maior bilheteria de documentário no país. Agora em 2006, uma segunda versão em DVD, ampliada e recheada de extras, foi lançada lá fora – e parece que perpetuará o êxito. O tal enlightenment documentary, sem dúvida, já é um novo filão.


editoria@revistacinetica.com.br


« Volta