in loco - cobertura dos festivais
A Próxima Estação (La Próxima
Estación), de Fernando Solanas (Argentina, 2008) por
Rodrigo de Oliveira Política
de primeira, cinema de segunda Já
perto do final de La Próxima Estación, depois de termos afirmados
e reafirmados, em regime tautológico absoluto, todos os males provocados
pela má administração das linhas ferroviárias do país,
que levaram fatalmente ao seu sucateamento e privatização a preço
de banana, Fernando Solanas encontra um ex-funcionário da Ferrocarriles
Argentinos diante de uma imensa estação de trem abandonada. É
apenas mais uma das testemunhas e vítimas da história que o filme
encontra, e apenas mais uma das inúmeras cenas de completo descaso que
a câmera flagra. O ex-funcionário então se vira para a câmera
e, com a estação ao fundo, explica o que aquela imagem "significa"
(palavra dele). O testemunho equilibra uma consciência política extrema
e uma retórica da perda, digna e ao mesmo tempo melancólica, exatamente
como o próprio Solanas faz em narrações ao longo de todo
o filme. E exatamente como o termo de princípios que o diretor utiliza
na sua relação com o objeto do documentário, um testemunho
que desacredita no poder da imagem como peça de discurso natural e imediata
("estamos vendo, e isso que vemos fala sobre si") em nome da reiteração
pela palavra, da explicação pormenorizada ("isso que vocês
vêem só se completa com a minha presença de anunciador").
La Próxima Estación é
um desses filmes que soam como peças para um programa de rádio ou
um áudio-livro, a tal ponto radical em sua opção pelo verbo
que, em alguns momentos, parece se ressentir e se constranger com a "obrigação"
de preencher visualmente aquele discurso. Nos créditos de abertura vemos
que, ao invés de um roteiro, Fernando Solanas assina aquilo que chama de
"relatos", e logo saberemos do que se trata. O diretor aparece sentado
à janela de um trem em movimento, vira-se para a janela com um olhar perdido,
e depois se volta a um caderninho que tem nas mãos, onde anota obsessivamente
idéias sobre aquilo que observa. Mais que a figura indicial do diretor,
teremos a narração: voz professoral, calma, inabalável. Há
uma postura política assumida de cara, que condena por igual todos os governantes
argentinos dos últimos 100 anos pelo estado periclitante em que a malha
ferroviária se encontra, às vezes com um pouco mais de brilho para
um ditador ali ou um Carlos Menem aqui. Mesmo que desconheçamos esses detalhes
da história argentina, Solanas nos prova seus pontos de maneira bastante
contundente e, à maneira da esquerda mais articulada, fazendo parecer que
não há mesmo segunda versão possível para a tragédia.
É um pensamento que se apresenta inescapável justamente porque o
discurso se constrói a partir de uma questão de pura lógica
(e nisso o tom da voz de Solanas vem justamente para tirar a arrogância
que esta lógica poderia aparentar - porque, afinal de contas, trata-se
de um senhor de 72 anos que esteve lá, viu tudo, estudou tudo, recolheu
provas materiais e humanas irrefutáveis). Solanas
opera pela causa e conseqüência, com didatismo explícito e nunca
envergonhado de si (privatiza-se para melhorar o serviço, mas as empresas
destroem o serviço urbano e cortam as linhas para o interior, o que faz
com que cidades inteiras fiquem isoladas do resto do país, o que leva os
moradores dessas cidades a buscar as metrópoles, onde o serviço
ferroviário está destruído, logo...). Mais ainda, há
na narração aquela maneira muito delicada de fazer-se parecer em
dúvida quando na verdade se sabe exatamente o que pensar e o que se quer
fazer pensar com o filme: sempre ouviremos perguntas, questionamentos da própria
História com H maiúsculo ("qual dela seria a verdadeira, a
da mídia ou a deste filme?"), mas todas as dúvidas são
absolutamente retóricas, servem apenas para desfazer, novamente, a impressão
de arrogância: como todo filme panfletário, e eis aqui um dos exemplos
mais conscientes disso, é importante não se incompatibilizar com
aquele a quem se deseja catequizar. Mas aí vamos
às imagens. Via de regra, Solanas buscará ex-trabalhadores das ferrovias,
seus familiares, ou alguns poucos que continuam sobrevivendo da atividade nos
dias de hoje, e serão sempre pessoas incrivelmente articuladas, conscientes
de seu passado e da mesma lógica que o filme tenta (e consegue) nos vender.
Mas, outra vez para soar menos afirmativo e mais, digamos, onisciente, o diretor
se plasma nessas figuras, transfere sua voz a elas para não parecer que
grita sozinho sobre uma realidade muda: "vejam, eis a voz do coletivo, sou
apenas parte dela". La Próxima Estación preferirá
sempre o relato à experiência da câmera dentro dos espaços
que, como as pessoas, são testemunhas da história, e não
haveria problema nenhum nisso se os relatos não versassem sempre sobre
a mesma coisa, no mesmo tom, na mesma pegada política ressentida. É
um respiro quando vemos alguém escapar da lógica e, com caráter
menos programático e partidário que Solanas, lidar de fato com as
emoções envolvidas nesse jogo (como na história de um chefe
de estação que, mesmo depois de demitido e ter sua estação
fechada, voltava todos os dias para limpá-la, arrumar os horários
imaginários de partida dos trens, eventualmente até tocar o sino
para anunciar uma chegada inexistente). La Próxima
Estación é uma peça de contrapropaganda, e por isso mesmo
não pode se dar ao luxo do silêncio, da observação
pura e não-mediada, ou mesmo à percepção de que aquela
realidade às vezes se organiza de maneira quase ficcional (e veremos que
em Patricios, uma das cidades isoladas pelo fim das linhas férreas, os
moradores se reúnem para fazer o mesmo que o chefe de estação
demitido: limpar o lugar, fazer funcionar novamente o sino, mesmo que nenhuma
locomotiva passe por ali). A ficção é o terror da política,
e se ela não pode fazer parte do universo da denúncia mais melancólica
- os milhões abandonados à sorte pelos sucessivos governos precisam
parecer mais reais que a própria vida para terem o impacto conscientizador
necessário - é como ficção que Solanas observará
os poucos políticos, juízes e membros do governo argentino que consegue
entrevistar (em uma definição simples, os culpados pelo terror).
A eles é aplicada rigorosamente a mesma mise-en-scène de corredor-de-prédio-corporativo
que cansamos de ver nos filmes de Michael Moore, com Solanas à frente,
buscando respostas entre os poderosos, e a câmera lhe perseguindo, sem deixar
de faltar a trilha sonora à la desenho animado, como se, percebendo
que o terror é, na verdade, o retrato mais fiel da ignorância política
e da estupidez ideológica, não se pudesse fazer outra coisa se não
ironizar essas figuras de poder naturalmente cômicas. Tudo
isso é querer tirar muito pouco do cinema para um diretor que fez La
Hora De Los Hornos (1968) e A Nuvem (1998), isso só pra ficar
em duas obras-primas com três décadas de distância entre si.
Ao mesmo tempo, é também um direito legítimo (e muito bem
realizado) de tentar intervir diretamente num cenário que o filme percebe
como vazio de um pensamento eloqüente e divulgador confiável dos danos.
Mas existiram aquelas estações abandonadas, aquele número
imenso de vagões enferrujados e abandonados, as oficinas de reparo com
trabalhos deixados pela metade, cadernos com anotações de trabalho
nunca concluídas, as linhas de trem tomadas pelo mato, a sensação
assustadora de cidade-fantasma em todos os povoados abandonados no interior do
país - e, incrivelmente, a manutenção de um espírito
de resistência encarnado pelo número de crianças que vivem
ali, novas vidas lidando com velhos problemas, e é uma pena que La Próxima
Estación acredite que tem muito mais a dizer do que todos esses relatos
naturais que estiveram o tempo inteiro ali, ao alcance da lente. Agosto
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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