eletrônica
Protocolos do "bom senso conjugal" e do "conflito cordial"
por Ilana Feldman e Cléber Eduardo

Restringindo os conflitos humanos e sociais a uma estreita faixa social e geográfica do Rio de Janeiro, sempre em tom pedagógico e com cenas “discursivas”, Manoel Carlos, noite a noite, tem nos ensinado a nos comportar como seus tipos da Zona Sul, protocolares e exemplares. Depois de passar os últimos meses com uma notável variedade de adultérios e amantes em cena, os affaires (em gestação ou já com extensa ficha sexual) começaram a se dirigir para a oficialização, nos capítulos ambientados e exibidos durante e logo após o Carnaval. Rumo ao desfecho no próximo dia 2 de março, este tem sido o momento das esposas e namoradas, com as testas enfeitadas (sempre são as mulheres a viverem esse papel), detonarem crises melodramáticas – e fora dos padrões de “normalidade” – ou encararem a separação com incrível serenidade e superioridade. Afinal, na dramaturgia de Manuel Carlos, o grande amor da vida pode ser apenas o grande amor daquele momento.

De modo geral, não se trata mais do amor romântico tão caro à tradição folhetinesca, restringido aqui à fotógrafa Isabel (Viviane Pasmanter) e à interiorana Telma (Grazi Massafera). O amor em Páginas da Vida é efêmero, fugaz e não desprovido de algum pragmatismo. Curiosamente, a personagem Isabel (que ganha a vida fotografando noivas de véu e grinalda) é a última romântica urbana, e se apaixona, justamente, por uma imagem do também fotógrafo Renato (Caco Ciocler) no dia de seu casamento. Isabel apaixona-se por uma imagem, enquanto outro personagem, Jorge (Thiago Lacerda), se enamora no início da trama por uma fotografia de uma quase-desconhecida, a personagem Simone (Christine Fernandes), retirada em um encontro fortuito no imagético Cristo Redentor. Durante anos, Jorge cultivará essa imagem na tela de seu computador, até troca-lá por fotografias de Telma, sua nova paixão. Assim, o idealismo do tão anacrônico amor romântico vai sendo substituído por outra forma de idealismo, agora não mais transcendente e acalentado pela imaginação, mas impregnado nas imanentes superfícies de imagens idealizadas: paixões mediadas. A única sonhadora, de fato, é a pura Telma que, ironicamente, sonha na novela ser ela mesma, a ex-BBB Grazi Massafera, como na seqüência onírica em que a caipira siliconada, em noite de carnaval, desfila no Sambódromo sob flashes e aplausos, sonhando com sua própria trajetória – real – de ascensão social.

Porém, longe das velhas e novas formas de romantismo e distante do secular melodrama, as rupturas amorosas têm se dado com um “bom senso” caro ao universo social e geográfico do idealizado bairro do Leblon; “bom senso” como protocolo comportamental de distinção, razão, sobriedade e superioridade, efetivado pelas filhas da elite: Olívia (Ana Paula Arósio), Lívia (Ana Furtado), Simone (Christine Fernandes) e Tônia (Sonia Braga). Nenhum barraco, e nenhuma lágrima. Uma praticamente empurra o ex-marido para os braços da irmã. Outra deseja ao ex-namorado, no exato instante no qual está sendo abandonada, que seja feliz com a “próxima”, ou com uma provável amante. E há ainda aquela que, para demonstrar que está curada da dor do abandono, dá a benção para a rival, por quem o ex-marido foi, durante todo o casamento, apaixonado. Nessa narrativa pensada como pedagogia comportamental, a constante “responsabilidade social” – que tem pautado temas e discursos – funde-se a uma espécie de “CPC dos afetos” – que tem pautado os gestos. “É assim que vocês devem reagir”, nos diz, pelos diálogos, Manoel Carlos.

As exceções são as personagens transtornadas, caricaturalmente surtadas, cujo descontrole é da ordem dos nervos ou de falha de caráter, casos de Carmem (Nathália do Valle), Alice (Regiane Alves), Sandra (Danielle Winnits) e Marta (Lilia Cabral - ao lado), que, a cada capítulo que passa, são caracterizadas como mais alteradas, em um registro de interpretação permanentemente excessivo, over, acima do tom da “normalidade” – sem falar em atitudes limítrofes, como tentativa de atropelamento e de assassinatos. Mulheres que, de um modo ou de outro, vão sendo condenadas e patologizadas. O que significa que para as personagens “sãs”, menos afetadas pelas páginas vividas, as crises não deixam marcas, nem abalam estruturas. Pois essas são mulheres que “fazem diferença” (conforme o merchandising da Natura): sacodem a poeira, retocam a maquiagem, capricham no bronzeamento artificial e dão a volta por cima. Mesmo após o salto quebrado, elas continuam de pé, seguem em frente e viram a página, da forma mais indolor possível. Parece até que, para impedir maiores abalos em seus personagens, Manoel Carlos entra em cena, como o pai – apaziguador – de todos, para fazer o papel de “deixa disso”. Essa maneira lúcida e superior de enfrentar as perdas e os abandonos tem sido trabalhada no âmbito de um repertório de condutas e reações exemplares, sempre com a cabeça no lugar e sem espaço legitimado para atitudes intempestivas.

No entanto, assim que acaba o exercício de racionalismo comportamental de Páginas da Vida, empregado para ensinar o Brasil a se comportar nos paredões do cotidiano, somos imediatamente introduzidos em um exercício de estímulo ao confronto no Big Brother Brasil. Neste, freqüentemente vemos reações passionais, ameaças, denúncias e conspirações, da agressão verbal à proximidade do choque físico. O programa-gincana coloca um milhão em um anzol e joga os competidores uns contra os outros para morderem a isca. Em nome do milhão, vale – quase – tudo.

Se a Zona Sul carioca de Manoel Carlos é um exemplo didático de postura, a casa do BBB é o oposto dessa prática educativa. Ao colocar seres humanos dentro de um espaço cercado de câmeras por todos os lados, e procurando radicalizar no ambiente o espírito de competição capitalista, o BBB espera justamente as faíscas e rupturas, as tensões e distensões, de maneira a incendiar a temperatura dramática, com claras intenções de atirar a regulação cultural na piscina – intenção diretamente vinculada à fervura dos índices de audiência. No lugar do “CPC dos afetos” de Manoel Carlos (acima), temos o dispositivo da crueldade de um Michael Haneke ou o laboratório de ética de Lars Von Trier.

Mas, ao contrário do que a idéia de “laboratório humano capitalista” possa sugerir, não vale tudo. Embora Pedro Bial tenha recentemente tematizado com ironia as regras criadas dentro da própria casa (como, por exemplo, “não combinarás voto”), deixando claro não serem regras impostas à casa pela produção, o apresentador também tem procurado, com pulso firme, normatizar as condutas e reações. Ao mesmo tempo em que faz questão de salientar que o BBB dá liberdade aos competidores (que se auto-regulariam conforme a ideologia empresarial em voga no programa), quando essa promessa de auto-regulação e auto-gestão ameaça se desmantelar, o Big Brother precisa intervir tiranicamente com ameaças de punição e eliminação.

Temos nessa relação de simultâneo estímulo e cerceamento do confronto a soma de dois sentidos de cordialidade. No primeiro deles, relativo ao coração, vemos as reações-limite: suspensão da razão e atitudes emocionais. No entanto, não há suspensão de razão completa quando a razão atende pelo valor de um milhão de reais, exigindo, mesmo no calor das emoções, um nível de estratégia. Nesse sentido, é notável nessa sétima edição, mais que nas outras, a consciência por parte dos participantes de suas auto-imagem. O perspicaz Alemão (Diego Gasquez) tem se dirigido com bastante freqüência ao Brasil e a Bial, assumindo sem disfarces o seu papel de personagem e ator metalinguístico.

A cordialidade, ainda que nervosa, é, portanto, conscientemente administrada e auto-regulada. Se há uma ideologia da eliminação e do individualismo nesse jogo audiovisual, há também limites a serem respeitados – já que, de fato, valoriza-se a cordialidade na competição. Agora não mais se trata do sentido original de cordial, mas de seu senso comum, o de um mínimo de afabilidade mesmo entre competidores: “competição legal”. Grande emblema da dinâmica neoliberal. No entanto, mais que a cordialidade, no fundo, impõe-se a necessidade da tolerância para com as “diferenças” e divergências. E para mantê-la, com tantas rixas em jogo, é preciso calculá-la, administrá-la e regulá-la em nome do milhão.

Ao mesmo tempo em que a própria Globo anda propagandeando, em sua estratégia de esvaziamento do projeto de lei de classificação indicativa proposto pelo Governo, sua capacidade de se auto-regular, através de um suposto bom senso na composição de sua grade de exibição e da responsabilização da família, o maior sinal emitido à sociedade de que nessa programação não há lugar para baixarias foi transmitido no BBB de 25 de fevereiro. Neste dia de votação na casa, três participantes que justificavam seus votos foram bruscamente interrompidos por Bial, após ele ter passado o sabão em todos os membros da casa. Com expressão de poucos amigos e voz de “autoridade autoritária”, não aceitou as palavras dos três competidores, dizendo que se tratava de “opinião”, e não de “justificativa”. Pelo ponto no ouvido, Bial obedecia a Boninho, o Big Brother de fato, sem explicar a diferença entre uma coisa e outra. Afinal, onde acaba a justificativa e começa opinião? E porque uma opinião não é justificativa? Não importa para Boninho. Seu objetivo é exercer algum nível de censura para, por meio das palavras civilizadoras de Bial, evitar fornecer munição contra a própria Globo. Por isso, para impedir ataques pessoais ao vivo, entre os participantes, ele precisa intervir: isso não é justificativa.

Na Folha de São Paulo de 25 de fevereiro, mesma data em que Pedro Bial reprovava o comportamento indomesticável dos competidores, o BBB foi colocado no alvo da discussão. As imagens de agressão verbal e quase embate físico, ocorrência exibida no programa de quinta-feira, 22 de fevereiro, foram usadas pela repórter Laura Mattos como exemplo de comportamentos alvejados pela classificação indicativa.  Naquela noite, e talvez haja outras ainda, Bial e Boninho, os “Drs. Mabuses” do BBB, adotaram a cartilha de Manoel Carlos, ensinando os brothers a serem menos alterados e passionais no vale tudo. A partir de agora, tendem a insistir nessa tática. Na casa, portanto, não haveria lugar para os surtos de violência e sinceridade das personagens Carmem, Marta, Alice e Sandra de Páginas da Vida. Elas classificariam o BBB como um programa para a alta madrugada.

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