Programa Casé - O Que A Gente Não Inventa Não
Existe,
de Estevão Ciavatta (Brasil, 2010)
por Juliano Gomes
Pouca
invenção, pouca existência
Programa Casé transita por três
subgêneros do documentário: o biográfico,
o filme de arquivo e o filme de família. A filiação
aos dois primeiros é evidente. Vemos os principais acontecimentos
do pioneiro da comunicação no Brasil, Ademar Casé,
através de seu arquivo de fotos, filmes e sons. A incursão
na terceira categoria vem de uma informação que
não está no filme mas que acaba por dizer bastante
da postura do diretor em relação a seu protagonista:
Estevão Ciavatta é casado com a neta de Ademar Casé,
a atriz Regina Casé. Neste terreno mais íntimo,
em geral, há dois caminhos a seguir em relação
à grande proximidade que se tem com o tema: transformar
o material em algo que transcenda o interesse afetivo e pessoal,
aproveitando-se das relação de confiança
que se pode ter com entrevistados, que possivelmente se abrirão
e se mostrarão com muito mais facilidade do que com um
estranho que fosse entrevista-lo; ou, simplesmente, usar o filme
como expressão de um ponto de vista de pura exaltação,
reverência, já que esse é "dos meus".
O filme de Ciavatta acaba por trilhar muito mais este segundo
caminho do que o primeiro.
Se de fato há uma lacuna de filmes sobre
algumas figuras que foram centrais na comunicação
brasileira do século passado, como Ademar Casé,
há uma lacuna ainda maior de filmes que consigam se aproximar
deste tipo de personagem sem cair na armadilha que eles representam.
Casé é o exemplo do self-made man tupiniquim:
nordestino pobre e empreendedor que chega ao Rio e vence na vida
pela sua imaginação, inteligência nata e grande
aptidão para o trabalho. O diretor acaba absolutamente
seduzido pela figura de seu protagonista e termina por fazer dele
um retrato plano e regular. Casé é um exemplo a
ser seguido: trabalhador, irreverente, inventivo. A associação
entre sua trajetória e a do desenvolvimento da cultura
de massa no Brasil nos 30 e 40 somente deixa ainda mais evidente
seu papel de síntese desse Brasil mitificado. Não
há nada que desestabilize a ligação entre
o personagem e seu tempo (numa posição quase que
simetricamente oposta a um filme como Cartola, por exemplo,
que também lida com um personagem-síntese da mitologia
brasileira). Muito menos algo que ofereça alguma brecha
para além do mito do grande empreendedor afetuoso, olhado
de uma maneira que parece curiosamente distante, porque desproblematizada.
A estrutura do filme, além de absolutamente
linear (o que não é um problema em si) acaba por
somente acumular mais e mais informações sobre o
que já sabemos desde o primeiro minuto. Os únicos
momentos de alguma instabilidade dessa relação biográfica-cronológica-histórica-reverente
estão no depoimento de Regina Casé - mas que acaba
sendo uma ilha absoluta dentro do filme, uma exceção
que confirma a regra - e no impressionante momento com Braguinha
e sua esposa. Neste
segundo, há uma síntese muito maior e pungente,
que não tem nenhum paralelo no resto do filme: a presença
do compositor, de seu rosto muito envelhecido, de suas expressões
sutis que apresentam ao mesmo tempo uma vivacidade incomum e uma
presença quase incômoda da morte, de algo que já
está com seus dias contados, de um Brasil que já
deixou de ser. Braguinha rouba a cena, literalmente, no seu improviso,
numa graça que se expressa nos mínimos movimentos
dos olhos e do rosto, quase imobilizados, num apartamento que
parece um museu, com seu objetos embalados. Faz um improviso típico
de quem é formado nos tempos da rádio, com suas
impostações de voz e rápido senso de humor,
e mostra, ao mesmo tempo, um homem envelhecido pela ação
do tempo, que parece não pertencer mais a este mundo. Este
trecho parece ser o único lugar onde se pode enxergar verdadeiramente
qual a ligação entre todo este grande caldo cultural
e o presente, o único que responde a essa pergunta. Há,
então, uma síntese que mantém seus contrários,
que aposta sua força nesse embate que está na imagem
e que dá alguma profundidade ao olhar de Ciavatta em relação
àquilo que narra, à beleza desse acervo. Algo que
morre e que sobrevive na sua singularidade, ao mesmo tempo, ali,
para a câmera, diante dos nossos olhos.
O filme tem uma espécie de subtítulo
que ocupa toda tela no início dos créditos inicias:
"o que a gente não inventa, não existe".
Acaba sendo irônico que ele aponte justamente o que mais
falta ao filme: o ímpeto de invenção, de
criação, de tentar buscar e deixar ver as relações
que incidem sobre este material de arquivo para além das
linhas já dadas pela história oficial e pela postura
de exaltação. Programa Casé acaba
por ser justamente o oposto de seu personagem. Sua proximidade
com o biografado bloqueia seu olhar para além do óbvio.
A imagem final não deixa dúvida do raciocínio
que estrutura sua narrativa: um arquivo que se fecha.
Setembro de 2010
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