O
Profeta (Un prophéte), de Jacques Audiard
(França/Itália, 2009)
por Cléber Eduardo
Um filme (d)e seu tempo
Primeiro, os fatos. Um jovem de origem ou ascendência
árabe, Maik Al Djebena, na verdade de passado indefinido e sem
auto-identidade nacional, alia-se a bandidos corsos em uma prisão
francesa. Exerce o papel de lambe-botas (em sua primeira prova
de fogo tem de lamber outra coisa), antes de dar fim a um detento
(também árabe). Por não ter vínculos, nem com nação, cultura,
família e afetos, pode ser qualquer coisa. É múltiplo; um modelo
padrão do capitalismo contemporâneo. A prisão torna-se sua escola,
seu caminho para uma escalada ao topo da pirâmide criminal, à
qual se adapta, consciente de que, entre os muros do cárcere,
quem manda é quem pode matar e pagar mais. O meio produz o monstrinho.
Esse é ponto de partida de O Profeta, candidato derrotado
ao Oscar de filme estrangeiro neste ano, e vencedor do Grande
Prêmio do Júri em Cannes 2009. Tal reconhecimento, para quem leva
a sério estatuetas de “primeira linha” (como são as Palmas e os
Oscars), pode injetar muitas interrogações. Um aparente filme
de gênero, no qual um protagonista mostra sua potência de matar
como caminho, primeiro para a vida e depois para o poder, legitimado
nas duas principais tribunas do cinema? E não apenas: foi coroado
nas principais categorias do César (nove no total), o principal
prêmio do cinema francês. Isso diz pouco do filme, alguma coisa
das premiações, muito de uma lógica histórica. Audiard havia levado
oito categorias do mesmo César com De Tanto Bater meu Coração
Parou.
Esse
ponto de partida acima descrito – da escalada da violência – será
desdobrado e repetido até o fim. Djebena cumpre uma missão atrás
da outra para o chefão corso da cadeia, e, quando não está em
um desses servições, realiza servicinhos como fazer café para
os colegas. Não se trata de escolha, a não ser que a morte seja
uma (nesse caso, não é), mas de uma ausência de opções. Ele tem
de fazer o que tem de fazer. Pessoa certa no lugar errado ou alguma
coisa nessa linha. Por não ter afinidades com sua origem, também
não há senões de consciência, sentimentos de traição, nada desses
valores em torno de origem, de princípios e pertencimentos. Ele
é apenas um rapaz tentando não morrer. Se a estrutura dos acontecimentos
é de variação dos próprios, de forma repetitiva e infindável às
vezes, não são poucas as ações intensas, com algum nível de adrenalina
e capacidade de nos envolver, embora, se formos pouco inocentes,
saberemos de antemão que ele sobreviverá até o desfecho (ou ao
desfecho). Se morrer antes, afinal, o filme acaba: o que se narra
é seu percurso.
Isso
posto, o que nos mantém, de alguma
forma, de olho no filme? Justamente essa capacidade de atores,
direção e montagem potencializar um roteiro, que, antes de se
abrir a abordar a superioridade do poder e da sobrevivência sobre
qualquer outra noção, quer acima de tudo nos deixar acesos na
narrativa. Ponto para o projeto de eficiência naturalista do filme,
intercalado, aqui e ali pelos delírios do protagonista. O
Profeta acende uma vela para cada santo: tem lá algo de “como
funciona a cadeia”, mas, por individualizar em vez de expandir,
assume ser sobre algo particular. Se em um primeiro momento a
competência narrativa invade olhos e seqüestra atenções, ao final
talvez nos demos conta de que essa eficiência alimenta-se de si
mesma. Essa competência toda ameniza qualquer efeito desagradável
possibilitado pelas situações, porque o único efeito procurado
e conseguido, em grande parte, é o de nosso engajamento sensorial.
Passamos a tolerar tudo do personagem principal por conta da opção
do filme em nos colocar ao lado dele e por conta da relativização
de seus atos a partir da contingência asfixiante. Portanto, quando
ele mata, nós suspiramos (aliviados). Mata porque, afinal, tem
de viver. Até certo ponto.
Audiard investe-se em posturas bastante contemporâneas:
ausência de posicionamento da narração em relação à narrativa,
anestesia injetada no espectador para se manter com algum nível
de bem estar diante de algo aparentemente insuportável, um compromisso
com o espetáculo acima da responsabilidade. No final, acaba. Evapora.
E podemos voltar para casa ou comer uma pizza, dormir tranqüilo
e digerir sem congestão. O Profeta lida com uma estratégia
de sobrevivência e, nessa luta pela vida, apazigua os horrores
em nome da satisfação do espectador. Importante aqui levar em
conta que, em muitas das reações em sites e blogs, a tendência
é valorizar o espetáculo, a intensidade, a competência e o show
de bola do filme. Todos parecem ter sentido muito prazer diante
das imagens. Há quem festeje com velas e champagne uma cena de
assassinato. A morte só serve ao grafismo, portanto, não significa
mais nada. Alguém pode retrucar: é apenas imagem. Apenas não.
Uma imagem é muita coisa.
Há
ainda uma outra alternativa para pensarmos esse compromisso apenas
com a eficiência e a competência. São duas exigências da produtividade.
Ser eficaz independentemente de “em quê e como” a eficácia é empregada.
Não deixa de ser, tangencialmente, um das facetas de O Profeta.
Aj Djebena tem de cumprir suas metas, não importa para quem seja,
não importa como (desde que funcione), não importa em qual ramo
do negócio. Ele é o funcionário terceirizado de um sistema produtivo
– embora não oficial –, que tem chefões sem ter um patrão necessariamente.
Nada mais em sintonia com a noção do novo espírito do capitalismo.
O Profeta não traz isso à baila apenas, como reproduz essa
mentalidade. Nada diferente de uma corporação, dos departamentos
do RH, do lucro pelo lucro. Porque é de rentabilidade que se trata
nesse caso. Não é, porém, caso único. Pelo contrário. O filme
parece estar em sintonia com muita coisa de seu momento histórico,
detecta algo dele, mas, acima de tudo, confirma-o sem colocá-lo
em perspectiva crítica. Talvez haja uma intenção nisso, também
bastante atual, não no melhor dos sentidos: potencializar o indivíduo
em uma situação limite, na qual, para fugir da determinação da
circunstância, o indivíduo mostra força para resistir e virar
a mesa. A questão é: virar a mesa ou se manter nela, tirando os
demais? Sempre restam apenas as saídas individuais, como em Cidade
de Deus, onde Buscapé sobe enquanto a comunidade chafurda.
Esse discurso de valorização das saídas individuais
em contextos nos quais nada muda além do lugar do indivíduo parece
se alastrar hoje até por pensamentos de aparência rigorosa e sofisticada.
Seria a última possibilidade política, a do salve-se quem puder
ou da salvação pela brecha, onde às vezes só é possível passar
um apenas, que, livre das determinações, mostraria assim capacidade
para estar no mundo. Uma lógica de que, na tempestade, importa
a gota d´água. É compreensível que, em um mundo de possibilidades
estreitas em sua fachada de mil opções, qualquer escape seja celebrado.
Mas talvez também seja resignação, ingenuidade, cinismo ou apenas
um estreitamento. O Profeta parece ter um pouco disso tudo,
mas, se não está tão claro, é porque a soma disso leva à
ausência de compromissos.
Agosto de 2010
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