Primo Basílio, de Daniel Filho (Brasil, 2007)
por Cléber Eduardo

Pré ou pós?

O cinema de matriz teatral e determinado pelos diálogos, que deve ao vaudeville, à chanchada e à comédia de situações, é a praia rasa de Daniel Filho desde A Partilha até Se Eu Fosse Você. DF quer a imagem de quem fala, de quem escuta – às vezes quer algum detalhe do corpo, mas em linhas gerais a mise-en-scène é sofrível (embora melhor sucedida em Se Eu Fosse Você, que deve muito de sua comunicação cômica à montagem fluente e à entrega de Tony Ramos e Glória Pires). Já Primo Basílio é o típico filme brasileiro “de época”. No caso, de épocas – no plural. Pois além de deslocar o tempo histórico do romance de Eça de Queirós, que sai aqui do século 19 português para os anos 50 de São Paulo, o filme parece também emular o cinema do século 19 e dos anos 50, deixando assim de ser ambientado em uma época e aparentando ser da própria época. No caso, das épocas – no plural.  

Se é possível ver essa relação com o século retrasado, é porque há no encadeamento dos planos uma gagueira narrativa dos filmes de um Edwin Porter, de alguns momentos de curtas de Griffith, quando a continuidade das ações no espaço, por meio de cortes transparentes, ainda não havia se tornando uma ciência narrativa. E se é possível ver essa relação com cinco décadas e meia atrás, com as experiências de estúdios paulistas, é porque os espaços são cenários e não ambientes, assumindo uma radical pré-modernidade. Assim, Primo Basílio poderia ser um filme da Maristela – mas, em 2007, a pré-modernidade não é mais histórica, atual, de seu tempo, por isso, ou se está diante de uma homenagem (tanto a Porter como à Maristela; tanto aos “telefones brancos” do cinema fascista italiano quanto às primeiras telenovelas mexicanizadas), ou os últimos 55 anos passaram sem serem notados pelos olhos de Daniel Filho.

Há algumas pistas na própria imagem de que a primeira hipótese é razoavelmente provável. Podemos mencionar as mudanças de textura e os efeitos de back projection em duas externas e em uma cena dentro do carro, que suspiram quase parodicamente por uma Hollywood do thriller melodramático (Wyler, Hitchcock). Esse “remeter a outro momento”, que era modinha nos anos 80, com o lançamento com diferença de poucos meses de Inesquecível, de Paulo Sérgio de Almeida e o retorno após longa ausência de Guilherme de Almeida Prado (Onde Andará Dulce Veiga?), parece ter voltado à atividade. Daniel Filho teria feito, então, um filme “pós” e não “pré”, com a consciência de sua emulação de outro momento do cinema. No entanto, essa emulação, a rigor, é primitiva.

Sua autêntica aproximação com os anos 50 se dá pela limitação narrativa, por uma dublagem sinistra, um desenho de som tacanho, uma dificuldade dos atores de acertarem o tom da voz na finalização, um falta de padrão para adequar os diálogos à época, um uso qualquer das laterais do quadro. Por que o 1:85? Sem cairmos na facilidade de tascar o carimbo de “filme televisivo”, resta-nos manifestar a surpresa diante de uma imagem tão enrugada, com gruas subindo e descendo, talvez para justificar seu aluguel. Mania de grua.

E por que anos 50? Podemos levantar aqui uma série de hipóteses, sem que nenhuma delas tenha minimamente a ver com a lógica diegética. Nada nas situações remetem aos anos 50 (a não ser uma menção a JK, outra à Bossa Nova, outra à construção de Brasília), mas nada de relevante para a escolha da década. Talvez Daniel Filho, consciente, recuse a modernidade. Portanto, as últimas cinco décadas e meia (incluindo Nelson Pereira dos Santos) são apagados. Ou ignorados. Mas, espera aí, nem José Carlos Burle, um raro diretor brasileiro sem gagueiras narrativas, foi levado em conta! Burle já era Burle nos anos 50. Mas Daniel Filho, parece óbvio, é pré-Burle.

Primo Basílio deve ter sido planejado para interessar a centenas de milhares, ou até a milhões de espectadores, mas não tem características necessárias para estimular filas em frente da entrada da sala. Ora, não é preciso muito estilo para um filme fazer sucesso - tomemos como exemplo Dois Filhos de Francisco ou Carandiru. Uma jornalista de um guia de consumo paulistano tomou para a si a voz da classe média freqüentadora de cinema e nos ensinou sobre o desprezo do espectador pela noção de estética. Na sessão de 21h30 do Reserva Cultural, no dia 22 de agosto, em São Paulo, a estética foi realmente desprezada: a sala estava vazia.

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