pariscópio
Premières Lumières
por Leonardo Sette

Tudo começou em março de 2002 quando vim a Paris pela primeira vez. Entre esse primeiro encontro e setembro de 2005 fiz outras 5 viagens, permanecendo sempre exatos 3 meses (máximo permitido a quem entra na França como turista). No ano passado, cansei finalmente dos gastos com passagens e do nomadismo - acentuado por idas à Amazônia através de saudosa colaboração com o projeto Vídeo nas Aldeias - e consegui um pretexto técnico para ficar legalmente mais tempo: me aceitaram no terceiro ano de História do Cinema na Sorbonne. Desde setembro de 2005 então, vivo na cidade que viu nascer o espetáculo cinematográfico e que continua a ser a que melhor o celebra no mundo.

Paris tem a forma de um círculo de apenas 10km de diâmetro. As linhas 2 e 6 do mêtro se tocam em seus respectivos terminais formando um outro círculo menor (central) que contém em seu interior praticamente tudo o que um turista (a cidade é também a mais visitada do mundo) ou um cinéfilo quer ver. Não faz muito tempo, eu próprio fui os dois - turista e cinéfilo (ou turista-cinéfilo) - e descobrir a incrível concentração e variedade de bons filmes em cartaz aqui foi como avistar um oásis. Perdoem a analogia barata, mas é que a geografia da cidade reforça essa idéia.

O início é clássico: compra-se o Pariscope, livrinho de programação cultural que sai toda quarta-feira e inicia-se a garimpagem. Nas primeiras semanas o agendamento de sessões parece complicado, há filmes "demais" e alguns têm apenas uma exibição num único dia da semana - e muito provavelmente na mesma hora em que outros tantos candidatos interessantes. Surge assim o primeiro critério de prioridade de uma sessão sobre as outras, seguido do teor de raridade e do interesse pessoal momentâneo. Tem filme que passa toda semana há anos, outros que passam quase todo mês e ainda uns  que passam algumas vezes no ano. E os que nunca passam, passarão. Em Paris, é possível dar a língua pro DVD. 

Escolhida a sessão, resta pegar o mapa e partir em busca da sala. No começo, claro, fiquei impressionadíssimo ao perceber, de mapa na mão, que o cinema que exibia o próximo filme da lista estava logo ali, na esquina do outro de onde eu acabava de sair. Assim descobri o bairro mais cinéfilo do universo, o Quartier Latin, com seus antigos cinemas de uma ou duas salas, cheios de charme, onde só passam clássicos ou filmes "de arte". Ou de "arte e ensaio" como dizem aqui.

Completando essa teia de salas de Art et Essai (que não se restringe ao Quartier Latin) há três verdadeiras locomotivas. A Cinemateca Francesa, o Forum des Images e o Centre Georges Pompidou, que abriga o museu de arte moderna e é mais conhecido como Beaubourg (bôbur). O Beaubourg por sinal realiza nesse momento um sonho antigo: exibe nada menos que uma retrospectiva integral da obra de Jean-Luc Godard, acompanhadada por vastíssimo material audiovisual relacionado ao cineasta (140 filmes ao todo). No mesmo pacote, uma exposição concebida pelo autor abriu-se ao público no dia 10 de maio, após polêmico adiamento fruto de brigas e desacordos entre o cineasta e os comissários da exposição. Godard continua Godard. Felizmente.

A Cinemateca Francesa mudou-se há 6 meses para um novo prédio. Há ainda uma pouco de saudade no ar. Como descrever a energia que existia em torno da antiga sala no Palais de Chaillot, espécie de santuário cinefílico? Você deixava a sala sob o impacto de uma projeção impecável de Shadows, de Cassavetes, ou Lírio Partido, de Griffith, seguia por um corredor em mármore com pé-direito palaciano e na saída dava de cara com a Torre Eiffel imensa, 200 metros adiante. Ou com Jean Rouch, chegando para uma sessão acompanhado da esposa. Rouch, que era presidente de honra da Cinemateca, vinha praticamente todo dia a Chaillot simplesmente para… ver filmes. Tinha um sorriso permanente no rosto. Radiante.

Mas falar nostalgicamente de cinefilia está longe de ser o objetivo dessa coluna. A Cinemateca no Palais de Chaillot era maravilhosa de fato. Mas o que dizer da nova, com suas quatro salas, sendo uma permanentemente dedicada à projeção de clássicos ? Atualmente em cartaz, entre outras coisas, uma integral de Pedro Almodovar acompanhada de outra programação elaborada pelo cineasta, com filmes que influenciaram sua obra ou que simplesmente le gustan.

Bom, quis descrever um pouco a “infra-estrutura”. Essa cidade segue me impressionando muitíssimo e é isso que me faz aceitar o convite para tentar transmitir notícias de seu cotidiano. A idéia é contar o que acontece, pensando toda essa cinefilia de maneira atual, utilizando-a como combustível para refletir sobre o cinema hoje, ou ao menos fornecendo elementos para que o leitor o faça. A pretensão é que os relatos desse lugar onde o bom cinema é muito amado, respeitado e visto sejam estimulantes para quem estiver acompanhando de longe. É evidente que ninguém precisa estar em Paris para entender ou gostar de filmes. Apenas estou convencido de que conhecer a relação da cidade e da França com o cinema tem tudo para ser revelador e inspirador a um país como o Brasil. Gostaria que esse espaço servisse como boa fonte de informação. Veremos.

N.do E.: Todas as fotos desta coluna são de autoria do redator.


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