in loco - cobertura dos festivais

O Primeiro a Chegar (Le premier venu),
de Jacques Doillon (França, 2008)
por Eduardo Valente

O mundo é um palco

Geralmente, quando se usa para falar de um filme a expressão “teatro filmado”, se quer, antes de mais nada, fazer uma colocação negativa sobre a obra. Mais especificamente, se quer tratar de uma situação estético-dramática que diria respeito a um filme centrado em um (ou poucos) ambiente, com poucos atores e movimentação da câmera, entre outras características mais facilmente atribuídas ao que seria o teatro. Para além de ser uma conceituação simplista eventualmente útil, são filmes como O Primeiro a Chegar que deixam claro o quanto é reducionista esta compreensão do que é o teatro e, principalmente, das imensas possibilidades que este apresenta na sua relação com o cinema.

O filme de Jacques Doillon começa pegando dois personagens em meio a um diálogo cujas bases imediatas não compreendemos, porque entramos no meio de uma cena. A construção deste momento, que lembra numa primeira olhada bastante epitelial o cinema dos Dardenne, não teria efetivamente nada a ver com o que pensamos ao ouvirmos falar em “teatro filmado”: espaços abertos em locação, câmera na mão, interpretações em registro naturalista e coloquial. No entanto, logo vai ficando claro que o filme de Doillon é profundamente teatral naquilo que esta forma de arte tem de mais básico: primeiro, a noção de um drama interpretado por atores; e, segundo (ir aos dicionários em busca mesmo do significado de “teatro” nos ajuda bastante aqui), uma encenação onde igualmente importante ao que se vê é aquele que vê e, principalmente, o espaço aberto entre os dois pelo imaginário. Pois é justamente nestes dois quesitos (drama encenado e imaginário) que o filme de Doillon nos move o tempo todo e, mais do que isso, efetivamente maravilha em mais de uma ocasião.

Citar os Dardenne, neste sentido, pode ser muito útil, porque a maneira como, após este começo, o filme de Doillon se distancia totalmente de objetivos e ferramentas dos irmãos belgas, ajuda a perceber a dinâmica eminentemente teatral do filme. Afinal, embora os personagens de sejam parte de uma estrutura social bastante marcada (e inclusive determinante), evoluam em espaços absolutamente realistas e em tom naturalista, Doillon insere ali seus atores e o seu drama com uma noção muito forte do arbitrário tão típico do teatro: os encontros entre os personagens têm um tanto de absurdo e as trocas de diálogo possuem muito de declinação, onde se pode perceber tanto o prazer da escrita do texto como do trabalho com os atores (absolutamente excepcionais na sua criação de “tipos” que, ao mesmo tempo que são característicos – não por acaso, fala-se em “o policial” ou “o marginal” –, se tornam únicos por encarnarem naqueles corpos e rostos e não em outros).

Na verdade, o que vemos em O Primeiro a Chegar (título aliás maravilhosamente teatral) é a transformação do mundo todo em um palco, e não por acaso, Doillon gosta de explorar dois tipos de construção visual no filme: a que coloca os personagens no meio de espaços incrivelmente abertos da natureza (praias, descampados, beiras de estrada); e a que explora as ruas da cidade de maneira em que estas pareçam quase sempre vazias, quase que um cenário virtual para o drama a ser encenado. Há ainda um terceiro espaço explorado no filme, e este é o do interior das casas, quartos de hotel e esconderijos no campo, mais facilmente conectado àquela idéia simples de teatro que mencionamos acima, e quase sempre filmados de maneira a explicitar esta sensação. Entre os três espaços, a sensação é sempre das transições de uma comédia de erros, de suspense quase surreal, de melodrama latente, onde o principal é o prazer da ficção, da elaboração do drama em sua dimensão mais romanesca.

Finalmente, é preciso se dizer algo sobre o lugar pensado por Doillon para o espectador, parte tão integrante do teatro, como dizíamos lá em cima. Na sua construção de personagens, não há em O Primeiro a Chegar qualquer espaço para a psicologia simplória nem para a justificativa de atitudes. Os corpos se movem e reagem de acordo com cada situação movidos por suas pulsões imediatas e, principalmente, os desígnios do dramaturgo. Ao espectador caberá então todo o resto do trabalho: construir o que veio antes, o que virá depois, e principalmente julgar a partir dos seus modelos de compreensão do mundo e do ser humano cada um daqueles atos. Nenhum personagem em cena é simples, pelo contrário: quase todos possuem momentos de extrema simpatia e antipatia – ou seja, trata-se de empatia, antes de mais nada. Doillon percebe que, uma vez que a interação ao vivo entre palco e platéia é a dimensão teatral maior que o cinema jamais poderá reproduzir, cabe criar um outro tipo de interação “ao vivo”, que passa pelo campo do imaginário sempre. E é nisso, assim como no nada simples prazer de encenar uma ficção com atores, que seu filme é tão excepcional.

Outubro de 2008

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