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Para que servem os festivais?
por Cléber Eduardo

Não se tem aqui nenhuma disposição, apesar do título provocativo, de pedir o fim dos festivais. Mesmo que esses eventos possam ter apelos turísticos e ganhar fotos no colunismo social de cada local (o que, para o cinema, tem relevância zero), justificam-se, em alguma medida, pela circulação dos filmes. Um conjunto de produções contemporâneas exibida em uma cidade sem acesso assíduo às ficções e documentários realizados no país injeta desejo de cinema nas platéias beneficiadas, e os informa sobre os resultados do uso de dinheiro de incentivo fiscal nas realizações exibidas. Todo festival têm, assim, caráter de amostragem e, na prática, essa é sua maior atribuição: selecionar os trabalhos mais representativos de um mesmo momento histórico, dentre aqueles inscritos para participar da programação.

Mas existem festivais também empenhados em valorizar a importância de seus prêmios. Se nenhuma premiação brasileira estimula a bilheteria dos premiados, também não garante legitimidade crítica a nenhum deles. Responsabilidade dos júris. Não se pode levar a sério competições cinematográficas que elegem como melhor filme o novo Gaijin, de Tizuka Yamazaki – por mais que, no ano de sua vitória em Gramado, 2005, os demais concorrentes também fossem de constranger. O que se fazer? Talvez uma decisão radical, que carregue nela um recado, um protesto, um alerta, possa ser levada em conta, mas, na cultura da negociação, alérgica à conflitos, na qual vivemos, isso seria subversivo, um golpe contra o cinema brasileiro. Em nome da diplomacia, portanto, sacrifica-se a legitimidade crítica.

Em Gramado 2006, porém, a situação era outra. Pelo menos dois dos concorrentes, Serras da Desordem, de Andrea Tonacci (fotos acima e abaixo), e Atos dos Homens, de Kiko Goifman, ostentavam características mais que “premiáveis”: ambos trabalham tanto na relevância social de suas revelações em imagens, como no caráter experimental com o qual lidam com a linguagem do cinema, procurando nela maneiras menos óbvias e avessas aos clichês de representação e aproximação das situações mostradas em cada filme. Não são projetos assim, com essa característica mais empenhada em especular a estética, que os festivais deveriam legitimar, tanto para reconhecer a importância do cinema preocupado em escarafunchar seu sistema de significação, como para reivindicar pelos prêmios um cinema mais vigoroso na forma e menos preguiçoso diante das facilidades dos temas de apelo humanitário?

Nesse sentido, diante de um empate em Gramado entre Serras da Desordem e Anjos do Sol, de Rudi Lagemann, algo destoa. Com todo respeito pelas boas intenções do filme de Lagemann, não há comparação, em matéria de estratégia cinematográfica e de seus efeitos estéticos, entre os dois filmes. Serras da Desordem é um filme com potencial de tirar o chão das fronteiras entre ficção e documentário, abrindo-se para uma série de possibilidades sem ser reduzido a um formalismo auto-referente. Anjos do Sol não passa de uma ilustração de pesquisa de campo, que se apóia no denuncismo tão valorizado por nossos jurados de concurso e de festival. O cinema como ferramenta de amostragem de realidade é, com o prêmio, valorizado na mesma medida que uma obra única, singular – e que leva mais longe a aproximação com Iracema, de Orlando Senna e Jorge Bodansky, cuja fusão de encenação e realidade também é procurada por Anjos do Sol com resultados modestos.

O empate promovido pelo júri de Gramado serve de sinal de alerta para júris de outros festivais: ou se utilizam critérios sérios de premiação, critérios rigorosos, agrade-se ou não à “classe”, ou não há sentido em gastar dinheiro com estatuetas. Ou se usa os festivais como espaço de estímulo a uma realização mais original, mais pulsante e mais pungente, que aborde as questões do país, se for o caso, mas colocando questões também em sua forma de expressão, ou é melhor termos apenas mostras não competitivas no país. É da tarefa dos festivais e de seus júris reivindicar, por meio de prêmios e da ausência deles, um cinema menos protocolar e mais ambicioso em sua ocupação de espaço, menos burocrático e mais contundente, menos modesto e mais disposto a pensar maior. Se não se pautar por estratégias de diferenciação, para premiar experiências refrescantes, os festivais deixam de ter sentido crítico, perdem legitimidade para suas escolhas e tornam-se sobretudo ponto de encontro para o “social cinematográfico”.

É para isso que servem os Festivais? Não deveria ser.


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