As Praias de Agnès (Les plages
d'Agnès),
de
Agnès Varda (França, 2008) por Fábio Andrade
Da
insuficiência
Escrever com algum rigor sobre As
Praias de Agnès traz dificuldade semelhante à de se comentar criticamente
a vida de alguém. Por vida, a propósito, é preciso não reduzir o tempo aos marcos
históricos deixados por cada pessoa, ou mesmo seu posicionamento político em relação
ao mundo; mas sim contemplar a duração de suas lembranças, dos momentos de inalcançável
privacidade que pairam além disso, onde o juízo não encontra espaço para se instalar.
Tal qual Santiago, de João Moreira Salles ou os cine-diários de Jonas Mekas,
As Praias de Agnès nasce de um incontrolável ímpeto de conservar, em imagens,
a impalpabilidade das memórias da vida de uma pessoa – não da memória em si, como
fazia Resnais, mas das memórias, plurais, particulares e intransferíveis. E
como se pode julgar memórias particulares? Podemos nos posicionar diante do desejo
de extravasá-las, ou ainda da maneira que se faz isso. Mas, ao menos no caso de
As Praias de Agnès, a medida seria desigual. Pois, no filme, não há procedimento
a ser julgado: há as imagens, e a entrega que as torna possíveis. Como se julga
um epitáfio de próprio punho? Pois As Praias de Agnès não é diferente disso.
Mesmo que Agnès Varda siga o caminho de Manoel de Oliveira, e continue filmando
por mais 20, 30 anos (como todos desejamos), é palpável a sensação de despedida
que paira sobre o filme. Continuar filmando, aliás, é uma intenção que o filme
– ao "terminar", e depois abrir espaço para um último parêntese – oferece
como possibilidade; talvez até como desejo. Caso o mundo impeça, tudo parece dizer,
a despedida já foi feita. Mas
As Praias de Agnès não é um auto-inventário – como Chantal por Chantal,
de outra cineasta franco-belga, Chantal Akerman –, tampouco uma auto-celebração
felliniana, um convite de baile para seus próprios fantasmas. Na verdade,
o filme parece francamente decidido a implodir qualquer noção de origem
ou trajetória, misturando os tempos verbais em um único manancial de lembranças.
Varda volta ao lar de sua infância, mas acaba mais interessada na coleção de trens
do atual morador da casa. Em outro momento, ela volta às locações de La Pointe
Courte, mas a reconstituição tem pernas bem mais curtas do que seu interesse
pelas vidas crescidas das crianças do filme. Mostra os momentos em que sua casa
serviu como locação para filmes (os seus e os do marido, Jacques Demy), e, ao
fim, a diretora produz uma instalação onde uma casa tem as paredes feitas de filme.
Ali, dentro do cinema, ela diz se sentir em casa. O filme
se constrói nesse movimento aparentemente desregrado, que ganha uma consistência
por ser povoado de criações de uma mesma artista. Mesmo quando não parece haver
um padrão a reger as formas, elas se encaixam como partes das memórias. “Memórias”,
sempre no plural. As Praias de Agnès desova uma série de imagens que, embora
nem sempre articuladas, trazem o traço constante de uma criadora fascinante. Agnès
Varda tem uma história de vida extraordinária, e a naturalidade com que ela revisita
essa história – com suas figuras e feitos absolutamente notáveis – dá ao filme
um
sentimento ambíguo; um misto de tristeza e alegria que só pode vir com a consciência
do fim. Essa consciência traz, para o filme, aquilo que o faz realmente grande:
um despudor completo em se criar imagens fiéis à ambiguidade desse sentimento.
Ela oferece begônias a seus amigos mortos, projeta o rosto de Demy em uma parede,
substitui Chris Marker por um gato de desenho animado, fala de Jim Morrisson só
para falar de Jim Morrisson; e todas essas imagens – muitas vezes gratuitas e
de enorme pieguice – aparecem contaminadas por tamanha entrega que se tornam realmente
tocantes. Acima de qualquer julgamento, as imagens de As Praias de Agnès passam
uma sensação plena de pertencimento. Como partes de seu corpo, são, todas
elas, imagens de Agnès Varda. E quando essa entrega se torna tão palpável quanto
aqui, só nos cabe, também, nos entregarmos plenamente a elas. Setembro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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