Praça Saens Peña, de Vinícius Reis (Brasil, 2008)
por Rodrigo de Oliveira

Seleção natural

Paulo Barbosa é um professor de escola particular rendido à mediocridade do emprego em nome das obrigações familiares. Quando um editor o chama para escrever um livro sobre a Tijuca, bairro em que mora há anos, Paulo vê a chance de emergir desse conforto da ignorância que a vida doméstica lhe proporciona. É claro, pela encenação de Vinícius Reis no começo de Praça Saens Peña, que toda a suposta elegia ao universo suburbano e ao verdadeiro berço que a geografia local sugere não passa disso, suposição assumida como folclore, como verdade anterior ao contato pragmático com a coisa. A Tijuca é tão desconhecida por Paulo como a dinâmica de sua própria casa e, com armas muito parecidas, o escritor se dedicará à primeira enquanto o próprio filme, sem estardalhaços, se pegará à segunda. Nem magia nem encanto, o bairro é um objeto de interesse como outro qualquer: dele, Paulo espera retirar um livro, e espera que o livro o retire do atoleiro. Não há carinho incondicional, há senso de oportunidade. É atrás das melhores histórias publicáveis, e não dos melhores contatos pessoais e afetos humanos, que se está partindo – uma coisa não implica necessariamente a outra, ainda que possam se reunir ao longo do processo.

Seqüência-chave é o momento em que Paulo, às voltas com o rumo que dará às suas “histórias tijucanas”, vai comer um cachorro-quente na rua e, de canto de ouvido, conhece o drama de um morador da favela mais próxima, que teve o filho morto diante de seus olhos e precisou fugir da gangue que comandava o morro. A decupagem de Vinícius Reis é primorosa em toda sua “calhordice”: durante todo o tempo da curiosidade e ligeira intromissão, e depois, quando o escritor parece se compadecer com a tragédia do amigo recém-adquirido, vemos o sujeito de costas, invariavelmente fora de foco. O que se exibe para a câmera é Paulo, mastermind, e cada contração no rosto de Chico Diaz à medida que aquele drama de ocasião vai se transformando na razão da existência de seu livro. A expressão de quem descobriu o ouro e não tem vergonha nenhuma disso. Importa pouco que Paulo e o sujeito se tornem amigos, que dividam suas histórias, que se dêem conselhos ao longo do filme. O momento original é marcado pelo pecado do interesse contra a compaixão obrigatória. O sujeito que teve seu filho morto só entrará na zona de foco da câmera quando Paulo finalmente reconhecer que é ele sua plataforma para o fim da miséria intelectual.

É aí, talvez, que Saens Peña coloque em xeque tudo o que podemos perceber como registro carinhoso e partidário do núcleo familiar classe-média, uma vez que este ambiente se mostra igualmente disponível à capitalização em cima do que houver de mais chamativo, de mais potencialmente dramático, mesmo que às custas de seu protagonista imediato. O processo criativo vai apagando a figura de Paulo, um retiro provocado pelo trabalho que também o retira da trama – e pior (ou melhor), o torna aquele mesmo sujeito desfocado de antes. A notícia do livro e do cachê pago por ele transforma a vida da família de uma maneira quase cômica, são três mil reais e um sem-número de sonhos que devem caber dentro do pouco orçamento extra da casa. É, no fundo, o pouco que faltava para que aquela família perdesse de vez o laço mundano que atava sua existência diária e se permitisse, cada um à sua maneira, dar os vôos para cima e para além da Tijuca e todo seu ambiente ensimesmado.

Não por acaso, caberá à mulher o mergulho mais radical, e o registro mais interessado. Tereza (olhos e sorrisos de Maria Padilha) escapa do casamento e do envelhecimento patente – a Tijuca de Saens Peña é, antes de tudo, o bairro da tradição e do acúmulo da história, filtro por onde muito pouco respiro juvenil se permite passar. O caso extraconjugal com um rapaz mais novo é menos a instalação de um problema que o reencontro com esse frescor e esse espírito que o filme apenas anunciara em seu começo, mas nunca cumprira de fato (justamente por ser Paulo o maior fiador dos “grandes temas”, da “grande história pequena” – é importante notar que à rua mesmo Paulo vai muito pouco, preferindo os livros, as bibliotecas, os personagens-certos, como o do morador da favela, e nunca a humanidade transitória e aglomerada a fórceps que, ao fim do filme, será enaltecida textualmente como a grande característica do bairro).

É novamente uma questão de registro e de domínio da cena, antes de qualquer outra coisa: não há intimidade fabricada no interior do pequeno apartamento da família, não há dinâmica interna esmiuçada na relação entre pai, mãe e filha que consiga se sustentar diante da potência de um flerte à mesa, entre Padilha e Gustavo Falcão. É quando o filme abandona sua mania de “chicotes”, movimentando a câmera rapidamente de um interlocutor a outro numa cena de conversa, para se escorar no bom e infalível plano-e-contraplano. Há improviso, mas o importante é que também se confia nele. É ali, Praça Saens Peña sabe, que se encontrou o ouro.

O domínio de Paulo é a imobilidade, e nem a improvisação e a tentativa de fluência o salvarão deste seu destino de apresentador de um universo que o repele quanto mais o filme se assente sobre ele. É no grande momento deslocado dentro da estrutura de Saens Peña, a entrevista que o personagem de Chico Diaz faz com Aldir Blanc (“para o livro”, claro), que esse paradoxo se escancara. Plano fixo, alongado e atravancado, mostrando os dois inteiros no quadro durante todo o tempo, falta a esse contato com a realidade mais pronunciada – um personagem da vida real, oras! – tudo aquilo que transborda a cada novo encontro de Tereza com o amante. E a imobilidade é fatal num filme que tem como profissão-de-fé o movimento, a transformação por quê se passa sempre que um problema é apresentado, vivido em sua integridade, e resolvido mais adiante, onde o tempo é marcado com inscrições na tela (sempre se deseja o próximo mês, ele está à espreita justamente porque é para lá que querem nos levar).

Tamanho descolamento do personagem – muito parecido ao que o próprio Paulo teve quando conheceu a tragédia da favela lá atrás – é perigoso para um certo código moral de relacionamento que povoa os registros desse tipo no cinema brasileiro dos últimos tempos. Não se tratando de um vilão nem de um mocinho, mas de gente-como-a-gente, Paulo seria a fronteira intransponível para o decoro do retratista, mas Saens Peña fica sempre tão melhor quando se desvia dele que nem mesmo a concessão final de Vinícius Reis parece o bastante para restituí-lo como epicentro das ações, e não apenas como a desculpa para se penetrar num mundo que oferece interesses maiores. Reconciliado com a família, Paulo teve o sucesso que merecia. Mas a narração do filme, prerrogativa sua durante todo o tempo, termina nas mãos (e na voz) da filha. A história dessa menina, justamente por ser tão marcada pelo passado e a ainda assim tão disponível a se contaminar da rua, das esquinas e do trânsito de pessoas, talvez seja a mais tijucana de todas – e essa sim ainda está por se escrever.

Janeiro de 2009

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