in loco - cobertura dos festivais
Post Tenebras Lux, de Carlos Reygadas (México, 2012)
por Pedro Henrique Ferreira

Paciência de Jó

É possível que Post Tenebras Lux sofra a mesma sina do longa-metragem anterior de Carlos Reygadas, Luz Silenciosa, e venha a ser enaltecido por suas formas plásticas e exercício de estilo. Mesmo que tenha sido recebido com vaias do público em Cannes, faturou o prêmio de direção - o que por si só diz muito sobre a natureza do filme: repleto de imagens trabalhadas com um esmero notável que criam momentos cinematográficos inegavelmente memoráveis. Mesmo o diretor favorece esta interpretação que a obra é um amontoado de desejos, memórias e sonhos concatenados de maneira muito semelhante ao Espelho, de Tarkovski. Sem uma ordem definida, geram-se imagens que devem ser “intuídas mais do que entendidas”.

Ainda que este elogio da fruição sensível explique muito dos pontos de partida de Reygadas, explicam muito pouco de seu resultado, os pontos de chegada. Por exemplo, a hipnotizante primeira sequência, rodada numa luz do anoitecer sob a iminência de um temporal, onde uma menininha perdida dos pais caminha por um campo com as vacas e os cachorros, tem um status maior do que o de sonho ou memória. Ela expressa um sentido específico na relação do todo que é o longa-metragem, e por consequência, uma visão de mundo - com desdobramentos políticos, filosóficos e mesmo estéticos. E justamente na visão do todo é que Post Tenebras Lux mostra suas inconsistências, um embolado com problemas que vão muito mais longe, e do qual a falta de nexo interior é apenas um dos sintomas.

Da mesma forma que o livro bíblico de Jó, ao qual o título faz menção, a trama de Post Tenebras Lux lida com a interpretação de alguns valores: a fé inquebrantável em Deus mesmo nos momentos mais sombrios; a passagem do tempo como forma de redenção e julgamento divino; a paciência como exercício milagroso do homem; o ímpeto violento de controle como o pecado, dentre outros. O desafio de xadrez de um jovem contra um velho serve como demonstração moral do egoísmo, do achar-se mais forte que Deus. O espancamento de um cão que reage a brincadeiras do dono também é uma demonstração do pecado que será castigado mais adiante. E um homem que comete suicídio arrancando a própria cabeça faz começar uma chuva de sangue, como descrito no Apocalipse. Da situação cotidiana do homem, tudo faz esta remissão ao cosmos.

Mas se há algo de um catolicismo ortodoxo na arte de Reygadas, há ao mesmo tempo um esforço de reforma para que este se expresse em uma estética mais “contemporânea”, seguindo uma cartilha de composição a fim de atualizar estes valores antigos (p.e. o demônio se torna uma animação vermelha com o pinto pra fora, carregando uma maleta). Cria-se uma nova iconografia do sagrado que engloba todas as formas do que era profano – o corpo, a pulsão, o sexo, a violência, o humor – e o faz por composições métricas ou lentes que criam manchas concêntricas ao redor do centro da imagem.

Porém, enxergamos a mesma crença na subserviência, na dualidade entre luz e escuridão, na contemplação inativa, na ideia de que o homem precisa esperar a justiça divina ao invés de tomá-la com as próprias mãos. Quando tais valores são transpostos para a esfera estética é que se justifica a atitude de passividade, não-entendimento ou fruição sensível que Reygadas tem para com as suas criações. E é justamente aí que Post Tenebras Lux, ao olhar inicia, uma obra estranha e diferente, se torna previsível, ordinário e inorgânico. Nada mais óbvio do que esperar de Reygadas o pecado, a penitência, o julgamento e a redenção, todos demonstrados acrobaticamente na vida de um casal e seus filhos. Perante tamanho esforço estilístico, a coerência interna também se perde, e o longa-metragem se torna um amontoado de blocos mais voltados a si mesmos e a suas próprias analogias do que relacionando-se dramaticamente ou narrativamente (mesmo que por abismos, espelhamentos ou labirintos) um com o outro.

Não há interesse no drama dos personagens. Nem tampouco na força dramática das situações apresentadas. O que há é uma vontade de remetê-las a um universo maior, como um exemplo da harmonia divina. E de filmar esta remissão de uma forma nova. O resultado é simples: no tal Apocalipse, por exemplo, El Siete (Willebaldo Torres) comete suicídio arrancando sua própria cabeça, para logo em seguida ter início uma chuva de sangue. Não sentimos sua culpa, remorso ou seu abandono, nem podemos acreditar que há razões o suficiente para este gesto. Ele ecoa como algo arbitrário realizado pelas mãos de um diretor que, a todo custo, quer inventar uma forma diferente e expressiva de nos mostrar o julgamento final no gesto de um homem. Este esforço de criação da imagem é tão visível e arbitrário que atropela a veracidade das figuras que serviriam de exemplo moral da grande fábula. No fim das contas, realiza uma grande jornada plástica para florear a fé, sem conseguir em momento algum realmente mostrar que ela existe.

Outubro de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta