Ponyo
– Uma Amizade que Veio do Mar (Gake
no ue no Ponyo), de Hayao Myiazaki (Japão, 2008)
por Fábio Andrade
De volta
Aqueles que só conhecem o trabalho mais recente
de Hayao Myiazaki podem ficar um tanto desorientados diante de
Ponyo. Não há resquício, aqui, do acento épico de filmes
como A Viagem de Chihiro, A Princesa Mononoke ou
mesmo do clássico Nausicaä. Embora todos os seus filmes
sejam marcados por uma liberdade de pensamento nada adulta, em
Ponyo Miyiazaki retoma o interesse exclusivo
sobre o universo infantil. Sim, Ponyo é um filme para crianças,
e o é com uma dedicação exclusiva ausente em seu trabalho desde
a obra-prima Meu Vizinho Totoro, de 1988.
Não deixa de ser curioso que, após duas décadas explorando o hibridismo
fantástico de seus filmes mais maduros (fantástico que, em Meu Vizinho Totoro,
ganhava base naturalista ao ser claramente estabelecido como fruto
de imaginação de duas meninas), Myiazaki sinta a necessidade de
se voltar tão direta e conscientemente às crianças novamente.
Curioso pois, embora elas claramente estivessem em sua mente o
tempo todo, seu status mudara com o tempo: com o sucesso
mundial de A Viagem de Chihiro, Myiazaki se tornou um dos
mais celebrados realizadores em atividade, fincando os pés fortemente
no terreno dos festivais e no radar de interesse de qualquer cinéfilo
minimamente sensível. Ponyo é um filme de correção de rota
– algo ainda mais expressivo pela presença marcante do mar e do
universo náutico em todo o filme – não só para o próprio Myiazaki,
mas também para o que o cinema para crianças (em especial o de
animação) teria se tornado.
Tal
correção, em primeiro lugar, é uma questão de traço. Enquanto
a animação em 3D de Pixar e cia se empenha cada vez mais no aprimoramento
de sua potência mimética, Ponyo traz um Myiazaki de mão
soberbamente solta. Embora o diretor seja talvez o mais famoso
defensor da animação à mão em todo o mundo, seu traço sempre foi
de enorme precisão. Em Ponyo, porém, os desenhos ganham
uma fluidez inédita em sua obra, trocando as cores brilhantes
e bem definidas de A Viagem de Chihiro por uma palidez
extremamente harmônica, mais próxima de um trabalho em aquarela. O mar – se
comparado ao rio em computação gráfica de A Viagem de Chihiro
– ganha uma opacidade surpreendente, por vezes tornando-se de
fato uma criatura viva, autônoma e una.
Essa
opacidade é essencial, e é por ela que Myiazaki chega à característica
central de Ponyo: profundidade. Pois há todo um jogo entre
opacidade e profundidade, no filme, que não diz respeito somente
à composição visual, mas também às operações de sentido que lhe
interessam. O mar, mesmo que visualmente opaco e impenetrável,
é de uma riqueza acachapante de tons, brilhos e formas de vida.
Tudo que parece intransponível – ou, se quisermos fazer um comentário
metalinguístico, tudo que existe em 2D – esconde enorme profundidade,
e é justamente nessa surpresa que o cinema se faz: algo que sabemos
ser duro, finito e chapado como uma parede, mas é capaz de se
desdobrar em formas e dimensões que, na impecabilidade ilusionista
do próprio truque, são fisicamente impossíveis. O cinema em 3D
é apenas a revelação ostensiva de uma operação de falseamento
que já é realizada plenamente no 2D – da qual os óculos se fazem
o ápice da perversidade barroca.
É
interessante que, com essas particularidades, Ponyo se
revele o verdadeiro anti-Shrek – como se a obsessão da
animação computadorizada com a profundidade de um nariz ou de
uma barriga saliente fosse a testemunha do descaso à profundidade
que realmente interessa: a do universo ficcional. Ponyo
declara isso fazendo aquilo que só a animação pode fazer sem cortes:
mostrar o exato momento em que um ser altera sua condição, transformando-se
de peixe em menina em um único e contínuo plano. É essa a questão
essencial (que, inclusive, existe também em
Procurando Nemo e Ratatouille)
para uma arte que realmente se quer formadora, pois ela reafirma
o poder da própria arte. Enquanto diversos filmes infantis se
limitam a reproduzir e transmitir para as crianças de forma indolor
um status quo já estabelecido (Os Incríveis, Shrek),
Ponyo indica justamente a possibilidade de cada indivíduo
de transformar radicalmente sua condição, com os ganhos e sacrifícios
inerentes ao processo. Para isso, basta haver algo para se amar,
dedicada e incondicionalmente, do outro lado.
Agosto de 2010
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