sessão cinética
Veneno (Poison), de Todd Haynes (EUA, 1990)
por Rodrigo de Oliveira

Um lamento de amor

Veneno começa com um plano que Todd Haynes repetiria 17 anos depois também na abertura de Não Estou Lá: imagem preto-e-branco granulada de um ponto de vista, uma câmera-alguém que vive a tensão do momento imediatamente anterior à sua apoteose – o maior espetáculo de rock da história no último, a mais incrível das fugas de um marginal no primeiro. Em ambos os casos, se trata da corporificação de um olhar, de abandonar a observação em nome do ser (ser-junto-de-um-outro), pois para o cineasta esta é a única maneira de habitar o mundo contemporâneo: nos tornando um duplo dele, para além de simplesmente participantes de suas tensões, vítimas de seus infortúnios ou vencedores de suas apostas. Lá, como aqui, só é possível trabalhar sobre os dados visíveis desse mundo, sobre sua iconografia, pois não há psicologia que resista ao confronto com os mais simples dados da anatomia humana. Um corpo ainda é mais revelador de si mesmo que sua mente. Encarnar uma câmera subjetiva não significa ter acesso aos pensamentos mais secretos de um sujeito, mas tornar-se físico num ambiente que nos convoca a todo tempo a agir.

E estas ações se dão num universo específico, talhado à maneira de Jean Genet, cujos romances Nossa Senhora das Flores, O Milagre da Rosa e Diário de Um Ladrão Haynes anuncia como inspiradores das três histórias entrelaçadas aqui. “Hero”, o conto de uma criança-problema de sete anos de idade que mata o pai quando o vê agredindo sua mãe, e então foge pela janela, voando, se estrutura como um falso documentário clássico, cheio de depoimentos tomados com testemunhas da história, narração em off jornalística, dramatização dos fatos (um expediente que veríamos outras vezes com Haynes em Velvet Goldmine e em Não Estou Lá). “Horror”, pegado ao imaginário do cinema B americano dos anos 50, fala de um médico que finalmente consegue materializar a libido humana numa fórmula líquida mas que, bebendo-a acidentalmente, adquire uma espécie de herpes brutal altamente contagiosa (outra metáfora para a disseminação da AIDS, como Haynes faria mais dedicadamente em seu longa seguinte, A Salvo). Por fim, “Homo”, trama mais facilmente relacionável à matriz literária, que traz as memórias de um ladrão que reencontra na prisão um antigo amor dos tempos do reformatório masculino da adolescência, numa encenação calcada no único filme dirigido por Jean Genet, Um Canto de Amor (1950), além dos dois maiores devedores de sua dramaturgia, o Pasolini de Decameron e Os Contos de Canterbury e o Fassbinder de Querelle.

Nos três casos, há uma compulsão terrível a ligar a experiência do amor à sua morte violenta, uma inversão que é própria da marginalidade-tornada-normalidade de Jean Genet, onde os valores mais tradicionais eram substituídos por seu antônimo sem nunca perderem seu caráter de ferramentas constitutivas do mundo: é a traição que torna o amor mais potente, a delinqüência que ocupa o lugar do heroísmo, a prisão que se expressa como o espaço da liberdade. Um médico tornado monstro espalha o horror pela cidade apenas por acreditar demais na possibilidade de compreensão do desejo, e a um menino para quem a violência sempre foi o grande motor desse mesmo desejo, uma fonte de prazer, vê-la retomar seu papel arcaico de punição pura e simples é insuportável. Por fim, tudo o que estes homens rejeitam é a obrigação da identidade, da definição de um papel. O reconhecimento especular lacaniano, aventado no primeiro dos letreiros do filme, é terrível justamente porque, uma vez diante do espelho, uma vez nomeado, o sujeito reconhece sua posição no mundo, e nada além do horror pode se tirar deste momento em que ser e destino são selados definitivamente. Esse universo invertido pede para que problematizemos estes duplos (a relação homossexual, como vista pelo filme, não passa disso: o outro como eu-mesmo é motivo para confronto, nunca para conforto). E Veneno, duplicado em seus protagonistas, trafega por tudo o que é mais reconhecível justamente para permanecer misterioso. É só assim que, como o menino bandido, os filmes podem abandonar as aspirações de elevação para, fisicamente, voarem como os anjos demoníacos que precisam ser. Pular janela abaixo não é suicídio, mas libertação, e não há nada a se lamentar nisso.

Dezembro de 2009

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