ensaios
Memórias do presente
Poeira ao Vento, de Hou Hsiao-hsien
por
Luiz Soares Júnior
"Uma nação é um princípio espiritual,
o limiar de profundas complicações históricas;
é uma família espiritual, e não um grupo
determinado pela situação territorial. Alguns vivem
no passado, que consiste na posse em comum de um rico legado de
memórias; outros no presente, que é o cotidiano
gregário, o desejo de viver juntos, a vontade de perpetuar
os valores da herança passada, recebidos por nós
de forma indivisa. (...) A nação, como o indivíduo,
consiste na culminação de um longo passado de deveres,
sacrifício e devoção"
Ernst Renan, Nação e Narração.
Poeira
ao Vento é um filme sobre passagens: o plano
que abre o filme já percorre o infinito comprimido de um
túnel, que vimos da janela de um trem que nunca acaba de
passar. Nele, o obstinado Wan e sua namorada Huen, que foram tentar
a sorte em Taipei, voltam para a pequena cidade de mineiros onde
vivem. Entre este ziguezague inicial - campo, cidade, contemplatio
pastoral, trabalho assalariado - e a ida de Wan para o Exército,
cristaliza-se, nas vinhetas de um presente que só se deixa
recuperar por meio dos interstícios do gesto e da duração,
o universo letárgico da infância. A quietude clarividente
que germina nos planos de Poeira ao Vento assinala esta
experiência da terra ou tempo natais - aos quais voltamos
sempre outros, sempre aquém ou além de nós
mesmos - como um limbo onde a vidência precede
a ação (que muitas vezes não vem), onde o
tempo se deixa apreender numa experiência do gerúndio:
sendo, passando, indo, voltando. Filme episódico,
moroso, regressivo: todos os afazeres dos personagens se configuram
antes de tudo como o "habitar" de uma paisagem, doméstica
ou campestre (se é que não são uma e mesma
coisa); a estética mourletiana da centralidade
como índice classicista de um plano que não se dissocia
do corpo - pelo contrário: o acolhe e amplifica - aqui
encontra sua misteriosa ressonância quietista.
O
cinema de Hou Hsiao-hsien é antes de tudo um sismógrafo
atmosférico que infiltra (ou atropela) vivências
- geralmente passageiras ou na iminência de transformações
- com horizontes históricos ou naturais (se é que
não são uma e mesma coisa), que as situa,
mesmo quando de forma diacrônica, esquizo (Millennium
Mambo); Hou as filtra para nós, distanciadas testemunhas
dos eventos, através do resiliente pathos melodramático
ou da ataraxia épica (ou da ataraxia épica aplicada
a um pathos novelesco, como nos afrescos Cidade da
Tristeza ou Um Tempo para Viver, um Tempo para Morrer).
O melodrama é um bom catalisador para entrechoques - intersticiais
- deste tipo, entre a crônica e a rapsódia, o registro
etnográfico e o trágico. Poeira ao Vento
é um dos filmes paradigmáticos do seu estilo justamente
por assinalar que o que interessa a Hou é justamente este
meio (de cultura?) intermediário, entre-dois,
em que uma subjetividade é erodida pelo tempo (tempo Histórico
e tempo experiencial), em que uma comunidade e um indivíduo
- ou um grupo dentre grupos - se cindem, e talvez jamais voltem
a se reconciliar: intercâmbio, mas de abandonos, perdas,
ausências.
É interessante tentar aqui um uso perverso da
divisão estabelecida por Lukács entre narrativa
e descrição; a primeira caracterizaria a prosa realista,
e teria como resultados "positivos" para o mestre húngaro
- em Tolstoi, Walter Scott e Balzac, por exemplo - a intensidade
dramática, a variedade composicional, música
e drama. Ao estabelecer proporções entre os
distintos níveis - rítmicos, plásticos -
da obra, a narrativa permite-nos uma experiência (mitieben)
do que nos é contado. Já a descrição
prima por um método consideravelmente pobre, em relação
à narrativa: em Zóla e Flaubert, por exemplo, o
foco em detalhes elide o movimento temporal, abstraindo os corpos
da duração, procedendo por fragmentação
analítica, transformando o leitor em mero observador (Zuschauer).
Assim, a descrição é demonizada por Lukács,
materialista dialético, por subtrair o potencial de transformação
histórico do texto da obra, o trabalho do tempo
visível sobre a construção.
Mas
é isto justamente o que Hou privilegia: descrições,
e não narrações, a manifestação
dos instantes em sua irredutível integridade fenomenológica.
Não há o risco de abstração mencionado
nos exemplos literários, porque cinema é antes de
tudo uma arte de presentificações: com a exposição
da matéria ao olho da câmera, já temos todas
as dimensões temporais desveladas, o dejà vu
e o por-vir, mas no presente do plano. Poeira ao
Vento é assim um filme de descrições,
mas Hou não representa os personagens como meros ocupantes
do espaço-tempo presente, como superfícies a serem
inventariadas; se Hou é um grande cenógrafo - como
Duras, Rivette, Yang -é justamente na medida em que sabe
gerir estas trocas entre os personagens e os espaços,
estas animações recíprocas entre ambos, intensificadas
dinamicamente aqui e ali pela interpolação de planos
de ponto de vista ou pelo uso da voz fora de quadro – geralmente
do avô ou do pai, marcos geracionais: os personagens fazem
coisas o tempo inteiro, não há um único plano
que não nos mostre ações (ou reações)
sendo executadas. "Vivemos e somos vividos pelas coisas"
(Ponge?).
Mas a gradação destas ações é
diferencial: há ações microscópicas,
como no plano médio entrevisto do limiar da porta, em que
o avô estende o prato para o neto, que se recusa a comer;
há ações comunitárias, que balizam
um tempo vindouro ou intensificam uma sensação comum,
como o plantio entre os camponeses e o drinque com os amigos,
na feira; há ações grupais, mas com um caráter
compósito, mesclado, entre o funcionalismo profissional
e a solidariedade entre vizinhos, como quando Huan e seus amigos
no Exército ajudam uma família perdida de mineiros.
Na ação humana, vetor de imbricação
no mundo (e pelo mundo), o espectro do mundo se faz carne; e o
indivíduo se exterioriza na clareira dos fenômenos
ou no corpus gregário da cultura, se ex-põe:
movimento recíproco entre uma percepção endógena
e um organismo exógeno.
Disse no primeiro parágrafo que Poeira ao Vento
é um filme sobre passagens, transições; mas
a frequência de elipses e inacabamentos que estrutura o
filme - gestos por terminar, adeuses por cumprir luto, reencontros
por festejar - não nos assinala justamente uma constância
do que passa, um persistir do que irremissivelmente flui e se
perde? O efêmero, de tão sistematicamente representado,
se transforma no necessário, o casual no definitivo, a
imagem na efígie, a crônica na memorabilia.
Há
uma dimensão messiânica na forma como se contrapõem
no filme os planos médios (caseiros, à altura da mão
e do olho) e os planos gerais (Cidade, Montanhas, Estações).
Estas inflexões que homens mortais imprimem sobre o mundo
(sem que este muitas vezes lhes cor-responda) permaneceriam
invisíveis se não fosse pela reverência que
lhes é destinada pelo plano geral e pelos "planos travesseiros"
de paisagem; esta situação maior do finito
na Natureza projeta vidas (e mortes) que vivem em surdina na grandiloquência
cósmica da paisagem, e permite que estas vidas se retirem
da História, onde desempenham um papel irrisório,
e adquiram o direito a uma inscrição mítica.
No penúltimo plano de Poeira ao Vento, o neto (de
férias do Exército) e o avô conversam na plantação;
sobre tudo e sobre nada, miudezas. Mas no distanciado contracampo
- infinitamente distante, como o ponto de vista de um deus - que
encerra o filme, e que nos mostra a montanha que circunda a ambos
e ao lugar, este "pequeno mundo antigo" é cinzelado
na tela de um presente imemorial.
Junho de 2011
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