ensaios
Do(i)s tratados da "pobrologia"
por Lila Foster

Num mês em que a Cinética dedicou uma atenção especial para o filme documentário, principalmente por conta das mostras Eu é Um Outro e É Tudo Verdade, mas também por conta de projetos envolvendo redatores da revista, não deixa de ser interessante notar a forma como dois veículos de comunicação de grande alcance dedicaram suas linhas e imagens para a figura do documentarista. 

Em sua segunda edição de abril, a revista Veja publicou um texto intitulado Tratados de “pobrologia”. Como parte de mais uma pérola da política sensacionalista da revista, o jornalista Leandro Narloch elenca uma série de características da produção de documentários brasileiros, sendo a mais marcante uma necessidade de filmar os pobres como vitimas, tornando-os, na maioria das vezes, “objetos estéticos” a serem filmados e contemplados com planos longos e trilha sonora melancólica. A função desses filmes? Pura expiação dos meninos e meninas brancos e mimados, de classe média e suficientemente alfabetizados para enviarem projetos para as leis de incentivo. Resumidamente, e de forma igualmente leviana, é essa a maneira pela qual o jornalista consegue destruir questões elencadas por ele mesmo e de extrema importância para a discussão da produção contemporânea.

A questão da ideologia de classe e da objetivação do pobre não é uma novidade. O livro de Jean-Claude Bernardet Cineastas e Imagens do Povo já denunciava esse posicionamento em filmes de determinados cineastas da década de 60, assim como estruturas formais que absorviam um discurso sociológico, esse sim, bem próximo de um marxismo didático, conceito usado pelo jornalista para qualificar a produção atual. Talvez a produção contemporânea seja realmente uma variação sobre o mesmo tema: a voz off proferindo verdadeiros diagnósticos sociológicos da década de 60 pode ter sido simplesmente substituída pelos planos longos e contemplativos que configuram uma estética de não intervenção por parte dos “pobrólogos”. É fato que a fissura social permanece como tema, talvez ainda representando um lado mais do que o outro, mas tal questão não passa desapercebido por muitos cineastas e existe, sim, uma consciência de que ao representar o outro o cineasta pode, na verdade, estar falando muito mais de si (por exemplo, Santiago de João Moreira Salles). Nada justifica, no entanto, que o texto comece, se desenvolva e termine com tanta irresponsabilidade critica.

No outro lado da balança está a figura do documentarista na novela global Duas Caras. Num dos seus capítulos, o diretor de A Batalha da Portelinha, documentário sobre um conflito territorial na favela entre Juvenal Antena e um traficante interpretado por Peréio, apresenta o filme para um possível distribuidor americano chamado Bernstein. O documentário em questão chama atenção por conter imagens e edição muito próximas da edição do conflito como havia sido visto vários capítulos atrás. Quer dizer, ou a novela já está suficientemente embutida de "realidade", ou a direção ficou com preguiça de fazer uma adaptação de linguagem, não diferenciando o estilo da novela e do documentário. O documentário, que quase parece um olhar de Deus tantos são os pontos de vista e posicionamentos de câmera, encanta o produtor que anuncia entusiasticamente que A Batalha da Portelinha será a sua aposta para o Oscar. Aí entra em jogo uma esperança depositada nos cineastas brasileiros, talvez na esteira da premiação do realista Tropa de elite em Berlim, e a possibilidade das “coisas nossas” atingirem o mundo.

É sabido que o discurso da esperança, da paixão pelo Brasil e da necessidade de realidade são lemas muito queridos para a Rede Globo. A festa na Associação de Moradores da Portelinha diante da possibilidade da comunidade ganhar a estatueta do Oscar, e vê-la exposta ali, de alguma forma premia o documentarista que, entendendo que não poderia contar essa história de fora, se mudou para a favela para estar mais próximo do seu objeto. Ainda que insinue uma visão bem mais positiva do que a outra citada, não deixa de ser interessante pensar em que termos esses dois imaginários constroem a sua razão de ser.

Maio de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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