sessão cinética
Plataforma (Zhantai),
de Jia Zhang-ke (Hong Kong/China/Japão/França, 2000)
por Fábio Andrade
A
vida lá fora
Plataforma, segundo filme do cineasta
chinês Jia Zhang-ke, talvez tenha sido o filme mais recente
a restaurar, com alguma unanimidade, uma idéia de cinema
político. Muito como Elia Suleiman - diretor palestino
que parece ganhar o rótulo de "político"
mais por sua origem do que por suas operações artísticas
- Jia Zhang-ke era alvo fácil: um cineasta jovem nascido
na China continental, que busca um diálogo direto com a
história de sua terra, mas que - em alguns casos, por censura
direta - não consegue que suas obras circulem dentro de
seu próprio país. Como o país em questão
é a China, os automatismos são ainda mais sedutores:
Plataforma foi imediatamente tachado como uma barricada
anti-globalização; um testemunho da ruína
de uma das últimas utopias práticas do século
XX; um último grito artístico de real vigor em suposta
defesa de uma vivência que definhava diante da chegada do
livre mercado.
De fato, Plataforma é um filme de uma eloquência
política rara. Mas mesmo à época de seu lançamento
(que, a rigor, nunca aconteceu de fato no Rio de Janeiro) já
era possível perceber o quanto havia de redutor nessa inflamação
esquerdista que se apegava desesperadamente ao filme, usando-o
como um colete salva-vidas. Pois a política de Plataforma
não está somente em seu tema, mas principalmente
em seu tratamento. Em primeiro lugar, o filme é uma proposta
de imersão espaço-temporal: os planos são
longos, os espaços são amplos, as ações
são rarefeitas. Jia Zhang-ke nos coloca a acompanhar personagens
que sentem, muito lentamente, a passagem do tempo. É preciso,
antes de mais nada, experimentar esse arrastar dos dias, esse
tédio que se concentra como vontade de potência naqueles
corpos tão jovens, e que são aprisionados pelos
limites da própria juventude. É preciso experimentar
uma realidade que é tida - pelos espectadores e pelo filme
- como diferente da nossa, para que então nos encontremos
no que há de igual.
Ao
longo da épica jornada do filme, acompanharemos o jovem
grupo de artistas sem que intervenções narrativas
mais claras sejam necessárias. A dramaturgia em Plataforma
expõe as personagens ao tempo para registrar a maneira
que o mundo age sobre elas, e a forma que cada sonho é
lentamente erodido pelos limites de realidade. Em um primeiro
momento, os limites são do próprio funcionamento
do regime comunista, que confinava os artistas a temas e preocupações
que não eram as suas. Em um segundo, os limites são
de mercado: a música pop chega, o grupo de teatro se transforma
em uma banda de rock, e o financiamento estatal é substituído
pela necessidade muito concreta de se ganhar dinheiro e pagar
as contas no fim do mês. Atravessando os anos junto a um
grupo de artistas, Jia Zhang-ke filma o paradoxo kantiano em que
a grande contradição da arte já se dá
na própria posição do artista no mundo capitalista:
oferecer algo que não tem valor mensurável para
uma sociedade regida por trabalhos valoráveis, e produzir
uma beleza impotente diante das contas, números e cifras.
Nesse sentido, seria fácil caracterizar Plataforma
como um filme simplesmente desencantado com a própria
possibilidade de arte no mundo contemporâneo - já
que o problema independe do regime econômico em que se insere
- se não fosse, também, um equívoco. Pois
se Jia Zhang-ke é um cineasta político, ele o é
justamente por seus procedimentos colocarem essa lógica
panfletária em curto-circuito. O mundo é terrível,
mas os jovens são incríveis e cheios de potência;
o sonho de uma garota é exumado em uma dolorosíssima
(e deslumbrante) cena de dança solitária que atravessa
mais um expediente de desencanto burocrático; um rapaz
quer ser vocalista de uma banda de rock, mas aquela realidade
lhe é tão distante que ele cumprimenta a platéia
com a etiqueta de uma reunião de trabalho; as relações
construídas são marcadas pelas dores das perdas,
e toda vida que surge (e ela não só surge, como
transborda cada plano) está condenada ao aborto contingente
e voluntário. Viver é se expor ao desgaste, mas
ao mesmo tempo é a possibilidade de povoar o mundo com
um imaginário que é só seu - e nesse sentido
é expressivo que, em filmes posteriores como O Mundo
e Em Busca da Vida, Jia Zhang-ke colocasse seu apego
à realidade em choque com intervenções de
ficção científica.
Plataforma
é um filme essencialmente político não por
tematizar a política, mas por criar choques de sensibilidades
conflitantes que obrigam o espectador a questionar suas próprias
verdades. O encanto convive com o desencanto, a tristeza convive
com a alegria, o sonho convive com a desilusão, o dentro
convive com o fora, e ao espectador cabe justamente repensar a aplicação
de cada um desses termos - operação definidora e política
por excelência. Jia Zhang-ke consegue tudo isso e ainda povoa
seu filme com personagens fortes e comoventes, com enquadramentos
de uma expressividade rara, com movimentos de câmera capazes
de instabilizar e redefinir toda a diegese de uma cena. Mais do
que um grande filme político, Plataforma é
de fato uma das maiores obras de arte da última década.
Janeiro de 2011
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