in loco - cobertura dos festivais
Viagem aos Pirineus (Le voyage aux Pyrénées), de
Arnaud e Jean-Marie Larrieu (França, 2008) por Fábio
Andrade Quando
menos é mais
Já próximo do final de Viagem
aos Pirineus, temos uma sequência de planos das montanhas enquadradas de ponta
cabeça. Na banda sonora, um som de água nos faz uma pergunta: estamos a ver um
reflexo das montanhas no lago, ou apenas uma imagem realmente virada ao contrário?
A câmera dos irmãos Larrieu não só nunca nos oferecerá resposta pra essa pergunta,
como repetirá essas imagens, duplicadas – em espelhamento completo – nos créditos
de encerramento do filme. Em A Câmera, primeiro volume da essencial trilogia
de livros do fotógrafo Ansel Adams, o autor defende o uso das câmeras fotográficas
de grande formato por, entre outros motivos, o visor da câmera não corrigir a
inversão ótica produzida pela objetiva. Segundo Adams, ao julgar a imagem de cabeça
para baixo, o fotógrafo precisará se ater não ao significado do que ele enquadra,
mas sim à sua forma visual concreta, onde os objetos são apenas elementos da composição
do quadro. A
aproximação um tanto improvável do fotógrafo americano com os irmãos franceses
é ilustrativa, pois Viagem aos Pirineus é, até certo ponto, um filme anti-semântico.
Seu ritmo de comédia screwball faz associações absolutamente disparatadas,
ao mesmo tempo em que oferece falsas pistas para leituras metafóricas. Para se
chegar ao filme, é preciso aprender a ler de menos. Os que tendem a ler demais
ficam, logo, para trás: não há articulação alguma entre o arroubo ninfomaníaco
de Aurore Lalu (Sabine Azéma), o homem que a persegue vestido de urso, os monges
da felicidade que a conhecem na floresta, ou mesmo a troca de corpos (sim, exatamente
como em Se Eu Fosse Você – mas que aqui é apenas uma entre várias situações
estapafúrdias) dela com o marido (Jean-Pierre Darroussin), que vem logo após os
planos invertidos dos pirineus. Mesmo enquanto símbolo dessa inversão física,
as montanhas são signo que dependem apenas de sua visualidade, sua correlação
de espírito. Qualquer
leitura que busque estabelecer relações entre as diversas minitramas de Viagem
aos Pirineus passará ao largo do filme, pois o que parece importar aos irmãos
Larrieu é, precisamente, a falta de conexões. Não é à toa, portanto, que o casal
de personagens seja, dentro do filme, um casal de atores; ou que o urso seja,
enfim, um homem vestido de urso, que o filme nunca mostra fora da fantasia – mas
que aparecerá fumando, urinando em pé, entre outras ações humanas. Ou mesmo que,
ao longo do filme, Jean-Pierre seja confundido diversas vezes com André Dussolier
– parceiro de Azéma nos filmes dirigidos por Alain Resnais, que tem como única
semelhança com Darroussin a gestalt do sobrenome. Pois o que fascina os
diretores parece ser justamente a representação abismática, onde narrativas estapafúrdias
se embolam, e levam as personagens sempre para os caminhos mais improváveis. Não
existem, portanto, metáforas, simbolismos, ou prova dos 9 que o filme não desmonte;
Viagem aos Pirineus parece se interessar pelo cinema enquanto produtor
potente de situações. Estamos, afinal, diante de um filme que se encerra com sua
mais expressiva frase: "Eu sou apenas um ator". Depois disso, o casal
entra no carro e larga as malas para trás. Viagem aos Pirineus não pede
nada além disso do espectador: que embarquemos, todos, deixando nossas bagagens
para trás. O embarque na Viagem depende, portanto, do envolvimento com
esse incessante ritmo farsesco – que, mesmo dentro de sua irregularidade, se sustenta
ao longo da projeção com inegável graça. Setembro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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