in loco - cobertura dos festivais
Pietá (Pieta), de Kim Ki-duk (Coréia do Sul, 2012)
por Thiago Brito
A purgação do conhecimento
Dinheiro é o fruto de todo e qualquer mal. Em seu
décimo oitavo longa-metragem, o sul-coreano Kim Ki-duk
resolveu que era hora de discutir o capitalismo contemporâneo
e a maneira como ele corrompe e destrói as relações
entre os homens. Estas são, claro, palavras do próprio
diretor quando entrevistado sobre o futuro dos "filmes de
arte" no circuito comercial sul-coreano. Filmado no bairro
operário de Cheonggyecheon, onde o diretor também
já trabalhou, o longa narra a história de Kang-do,
um sócio e psicopata que trabalha como coletor de dívidas
para um agiota. Soturno, frio, sem amigos ou família, Kang-do
é inicialmente caracterizado como um autômato sem
alma, que realiza todas as suas tarefas pragmática e resolutamente.
O filme foi escrito na mesma época de seu longa-metragem
em primeira pessoa Arirang, inspirado na morte de um
membro de sua equipe e amigo, quando Kim Ki-duk estava deprimido.
Como
os juros são estratosféricos e surreais, todos que
pegam o empréstimo se vêem impossibilitados de pagar
de volta, o que faz com que as visitas de Kang-do sejam como a
da morte em pessoa: implacável, ele alija os devedores
para coletar o dinheiro através do seguro, onde seu chefe
agiota figura como beneficiario. O cobrador corta braços,
pernas e dedos, sem dar ouvidos a clemências ou mesmo negociações
de cunho sexual. Não demonstra prazer ou mesmo sadismo
doentio. Isso tudo modifica quando uma mulher misteriosa começa
a segui-lo e invade sua casa, pedindo perdão por tê-lo
abandonado quando criança. A princípio desconfiado,
Kang-do a submete a todas as provações possíveis:
quase a estupra, a obriga a engolir um pedaço de sua coxa,
etc. Com a persistência, Kang-do a aceita, o que, em consequência,
faz com que mude sua visão de mundo. O arco dramático
termina como só poderia terminar essa fábula das
dores: no sacrifício mortal de Kang-do.
Supostamente
inspirado na famosa escultura de Michelangelo da imagem de Notre
Dame segurando seu filho, Jesus, ensaguentado e morto após
a crucificação, a versão de Kim Ki-duk distorce
e eleva essa proposição inicial a caminhos bem complicados,
possivelmente desastrosos. Aproveitando a crise econômica,
o diretor, à guisa de estipular uma suposta análise
das circunstâncias atuais que caracterizam o capitalismo
e seus excessos, coloca em cena um drama calcado na falta de humanismo,
inerente e consequente do sistema, e na necessidade da expiação
e da punição como formas de reequilíbrio
ou salvação. Kang-do é um zumbi, um inconsciente,
não possui a autocrítica necessária para
resolver internamente um problema que, embora não saiba
ou sinta, para o diretor tem que existir: sente falta de sua mãe,
falta de amor dentro de si, de ser cuidado e criado com valores
humanistas. Como antes não sabia, não sentia...
ou escondia dentro de si, como algo que de tanto tempo esquecido
se torna extinto.
Ao pautar sua visão das perversões do atual sistema
financeiro pela idéia do autômato, da inconsciência,
contra a consciência elucidativa que impõe ao sujeito
uma culpa inenarrável, o filme envereda por um tema batido,
até mesmo velho. Se o que falta a Kang-do é a autoconsciência,
o que se está em jogo é uma crença holística
de que existe, sim, um humanismo inerente e eterno dentro de todos
nós que, embora esquecido, persiste duro e firme. Caso
acordado, a dor trágica consequente seria mais próxima
daquela da narrativa edipiana: a da culpa que se expressa pelo
arrancar dos olhos. Embora Kang-do não seja um Édipo
Rei, em que se paute uma vontade de ser maior do que os deuses,
é esta a imagem poética que Kim Ki-duk consegue
conceber: a de um homem tomado pela culpa e que precisa, fisicamente,
lacerar sua vida como dignificação de sua trajetória.
A demonstração da transformação de
Kang-do se dá a partir de uma transmigração
de sua vida em sacrifício às perversões alheias
- ele se mata da maneira que desejou a mulher de uma de suas vítimas.
O
ato da consciência, ou da auto-consciência, tem direção
moralista, partindo da consciência do erro, da falta de
humanismo, da dor que se impõe aos outros. Para Kang-do
se fazer humano, é necessário que se faça
in-humano, que desapareça e transforme o último
ato de sua vida em um expurgo de suas dores e de sua vontade de
perdão. O que é, em suma, extremamente conservador
em comparação à transformação
das identidades, ou mesmo de sua vontade e busca, tema que se
figura - ou figurou - como epicentro de grande parte das narrativas
do cinema contemporâneo. Pietá, assim, pode
ser visto como uma resposta de Kim Ki-duk àquilo que caracterizou
em primeiro momento este mesmo cinema de arte contemporâneo:
ao invés de fluxo, estanque; ao invés de incertezas,
certeza; ao invés de metamorfoses, prisão. O homem,
aqui, não pode ir além de si mesmo ou daquilo que
realizou - e é em seus atos que está a definição
de seu caráter. Ao capitalismo atual e sua crise, o diretor
recomenda purgação, vingança e auto-sacrifício.
O problema real se inicia quando um filme com este teor é
o vencedor do Leão de Ouro em Veneza - é, então,
que percebemos existir algo mais do que podre no reino da Dinamarca.
Outubro de 2012
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