eletrônica Enfiando
o Pé na Jaca por
Francis Vogner dos Reis Lombardi,
um autor
Quem viu, sabe: a novela Kubanacan, de Carlos Lombardi,
foi evidentemente a peça mais estranha produzida pela rede Globo desde Vamp,
de Antônio Calmon, no início da década de 90. Kubanacan tinha um ritmo
repleto de desníveis, uma proposta dramática que muitas vezes rejeitava "a
dramaturgia" em nome de situações soltas e de uma profusão de ações aceleradas,
centenas de personagens, alguns conflitos diluídos em uma trama cheia de
clímaxes, outras (muitas) vezes absolutamente anti-clímax. O personagem podia
escapar da morte três vezes durante um episódio e, na sequência, poderia ficar
durante uma semana reformando a sua casa, sem que grandes eventos o perturbassem.
Com relação à moral das telenovelas, Kubanacan foi seu avesso e estava
mais próxima das histórias em quadrinhos, dos filmes de aventura e da pornochanchada
que da crônica social ou dos contos de fada como as novelas tradicionais. Lombardi
depurou as experiências de seus trabalhos anteriores, como Vereda Tropical,
Bebê a Bordo, Quatro por Quatro, e radicalizou o que fez na mini-série
O Quinto dos Infernos. O texto
de Francisco Guarnieri na revista Contracampo dá conta da radicalidade da novela.
Pé na Jaca não é novidade para quem acompanha
as novelas do autor, mas o atual cenário da teledramaturgia parece ressaltar consideravelmente
suas qualidades. Questões como sexo, família, alcoolismo são tratadas sem didatismo
e a tradicional má consciência de sua colega do horário das nove. Lombardi não
repete aqui o impacto de Kubanacan, mas a novela tem graça, carisma, ritmo
e, sobretudo, personalidade. Carlos Lombardi transforma hoje a novela no território
mais original e fértil da ficção na televisão brasileira e Pé na Jaca confirma
a regra de que Lombardi é o autor mais estimulante da teledramaturgia brasileira
em muito tempo. É um autor compromissado com a ficção e com o seu universo particular
e, se suas novelas expõem em alguns momentos temas atuais, esses não existem para
se esbaldar na polêmica ou no oportunismo – como muitas que embarcam no discurso
da preocupação social – e sim estão integrados perfeitamente no universo que cria,
amalucado e tão esquizofrênico quanto íntegro. Pé na
Jaca é uma novela das sete, horário tradicionalmente ocupado por tramas mais
cômicas. Talvez, por isso, as novelas nessa faixa horária têm a vocação de serem
feitas com mais liberdade, como prova o próprio Carlos Lombardi e Antônio
Calmon, outro importante autor desse horário que introduziu as telenovelas em
um universo de referências pop. Mas eles são exceção e não têm o destaque
que desfrutam as novelas das nove, em particular as tramas de Manoel Carlos e
Glória Perez, que moldaram uma tendência de novelas estimuladas por polêmicas
que giram em torno de eventos (primeira transa, primeiro beijo gay, alcoolismo
e etc), em que a habilidade de estardalhaço público e dramático vale mais do que
a astúcia do autor (ou autora) em estruturar conflitos que se componham com organicidade
a sua dramaturgia. Por isso, Manoel Carlos e Glória Perez
são quem ditam as regras nessa "dramaturgia socialmente responsável",
porque voltada à "realidade", que supostamente fomenta um confronto
entre os espectadores com os problemas da sua vida (como disse Manoel Carlos em
ocasião do sucesso de Mulheres Apaixonadas, "não é novela é a vida
real"). Carlos Lombardi trabalha em uma chave oposta a essa tendência,
não só por ser um autor do horário "das sete", mas porque trata dos
seus assuntos com exemplar desenvoltura, sem medo da ficção, do mau gosto, integrando
muitos dos temas que as novelas sérias repercutem como elementos dramáticos que
servem à história, não o contrário como se convencionou fazer.
Mas
é claro que não é só a honestidade moral e dramatúrgica que faz de Lombardi um
autor importante. Há algo mais em suas novelas. A problematização que ele faz
dos signos, da encenação e da narrativa da telenovela é no mínimo provocativa,
porque visa certa transparência de propósitos, como se suas tramas fossem um comentário
sobre a natureza da teledramaturgia, sobre sua moral e sobre seus mecanismos de
identificação com o espectador. Entre várias das chaves
da telenovela, ele usa como ponto de partida uma que às vezes é subterrânea, outras
vezes é somente sugerida, mas que sempre é presente e que nos últimos tempos se
tornou o "ponto de crise" da teledramaturgia: o sexo. O sexo é um dos
elementos dramáticos centrais da telenovela. Foi também do cinema brasileiro em
épocas passadas, mas de maneira geral é assunto recorrente na dramaturgia brasileira,
tanto que foi matéria-prima de dois dos nossos maiores dramaturgos: Nelson Rodrigues
e Oswald de Andrade. Na televisão, não raro, hoje em dia o sexo vem acompanhado
do discurso da responsabilidade ou é ligado exclusivamente à afetividade ou à
traição – Páginas da Vida é o exemplo mais bem acabado desse tipo de olhar.
No caso de Lombardi, o sexo é o principal motor de suas novelas. Não por acaso
o autor é velho desafeto da campanha "Quem Financia a Baixaria é Contra a
Cidadania", levando-se em conta que suas novelas com homens sem camisa, mulheres
seminuas, adultério, socos, tapas e piadas infames geralmente encabeçam as listas
de programas de conteúdo impróprio emitidas eventualmente por campanha de Ética
na TV, que tem critérios e objetivos que carecem tanto de análise e discussão
quanto os programas que denuncia. Em
Pé na Jaca é explícita falta de vergonha ao tratar de sexo. A energia que
movimenta os personagens é basicamente sexual, numa atração e repulsão de corpos.
O corpo aqui é o principal elemento da dramaturgia: os dois personagens centrais,
Lance e Maria, têm como ofício profissões que existem em função da imagem do corpo:
ele é personal trainer e ela é modelo. Lombardi sabe que, em uma novela,
as únicas coisas que se tem em termos de imagem são os corpos, pois, diferente
do cinema, a telenovela não se faz por meio de cortes, composição de plano, mise-en-scène.
O corpo é o único objeto da imagem (ou da visualidade televisiva, o que seria
mais correto dizer) e Lombardi faz dramaturgia para ele e não a partir dele (que
é coisa eminentemente cinematográfica). Cada episódio testa as resistências dos
corpos. Os quatro protagonistas parecem enfrentar as vicissitudes
de serem personagens absolutamente físicos. Lombardi parece exigir que o ator
seja mais um atleta físico e verbal do que exatamente um artista capaz de alguma
profundidade dramática. Lance (Marcos Pasquim) é um personal trainer que
corre de seus perseguidores, briga, pula de grandes alturas, faz exercícios físicos,
se envolve com diversas mulheres e salva personagens da morte; Maria (Fernanda
Lima) é a modelo internacional que explora mais que os outros personagens o humor
físico da comédia pastelão; Elisabete (Deborah Secco), uma ex-freira que doou
um rim para o pai que a rejeita, e que tem pelos homens um magnetismo físico que
insiste em reprimir; Artur (Murilo Benício), sempre entre o cansaço e a excitação,
é atropelado por Guinevere (Juliana Paes) saindo ileso e mais tarde ambos seriam
subjugados e empurrar uma perua velha atolada no barro. É
como se Pé na Jaca explicasse a funcionalidade do formato de telenovela.
A natureza desse formato vem à tona com uma força que não nega todo o naturalismo
"marcado" (ou artificial) das interpretações. Marcos Pasquim, herói
carsloslombardiano por excelência, e Fernanda Lima podem ser criticados segundo
critérios muito estreitos (e questionáveis) de não serem bons atores, mas os papéis
de Lance e Maria, lhes caem como uma luva. O que esses personagens fazem com o
corpo, outros fazem com o "verbal". Bruno Garcia tem um timing
perfeito pra interpretar os textos de seu personagem, assim como Murilo Benício,
um ator que vinha com uma imagem esgotada por escolhas erradas (como em América),
que agora tem seu melhor momento desde Vira-Lata, do mesmo Lombardi. Ao
invés de tentar ocultar o falso e se aproximar da realidade, a novela afirma e
expõe o fake de seu formato levando-a para um terreno da ficção pura, e
com seus elementos, não causa, por exemplo, um sentimento típico das telenovelas
que é a identificação imediata do espectador com a trama e a vida do herói (geralmente
um homem comum). Os heróis de Lombardi são caricaturas de tipos sociais, quase
super-heróis ou arquétipos populares que, por exemplo, a pornochanchada popularizou
como o corno, o canalha, o comedor bem dotado, a virgem sexy em ponto de explosão,
a mulher infiel, o gay escandaloso, a esposa gostosona, entre outros. As novelas
de Lombardi guardam esse legado moral da pornochanchada que o cinema fez questão
de esquecer. A mini-série O Quinto dos infernos foi o seu trabalho mais
bem acabado, nesse sentido, que remete não só ao ideário da pornochanchada, mas
também a um olhar carnavalizado, paródico, sexualizado e cafajeste da História
do Brasil. Não é necessário esforço para ver essas questões
em Pé na Jaca e no restante do trabalho de Carlos Lombardi, já que elas
são muito evidentes. O que ainda é preciso é boa vontade em entender as novelas
além da predisposição em achar o formato naturalmente ruim, porque disforme, impuro
e banal. Muito se falou que a telenovela tem formato, não forma, o que não
deixa de ser verdade, já que é um trabalho audiovisual que serve para comportar
uma história e, em termos de visualidade, tem uma preocupação restrita à agilidade
narrativa. Enquanto o cinema ainda faz um esforço hercúleo para conseguir alguma
empatia junto ao público, a novela consegue sem esforços, por isso, para entender
uma das variantes do olhar do brasileiro, inevitavelmente, tem de se passar pelas
telenovelas. Pé na Jaca – e a obra de Carlos Lombardi de modo geral –assume
uma postura consciente de telenovela, não se sabota e tem uma sinceridade de
princípios que não trata o espectador como idiota ou indivíduo suscetível a quaisquer
influências. Mais confunde do que esclarece – o que, em termos de televisão hoje
(que trabalha a linearidade de pensamento), é algo notável.
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