Pedrinha
de Aruanda - Maria Bethânia, de Andrucha Waddington (Brasil, 2007)
por Francis Vogner dos Reis
A verdade da superfícieO cinema de Andrucha
Waddington possui um princípio interessante, mas que nem sempre obtém sucesso:
é um cinema de superfície, onde interessa o impacto estético que ele pode obter
a partir da beleza plástica de seus filmes. Diferentemente dos filmes de Walter
Salles, os de Andrucha não parecem procurar na beleza plástica qualquer profundidade
dramática e humana. O que ele consegue tirar de autêntico em uma imagem pura e
plana e com alguns signos facilmente reconhecíveis? Em Gêmeas
o fetiche de boutique, porque o cineasta não consegue nada além de uma plasticidade
de museu de cera. Em Eu, Tu, Eles o diretor encarou o sertão, legítimo
terreno no cinema brasileiro celebrado por muitos como uma “caixa de ressonâncias
da realidade” e, nesse lugar de “autenticidade”, transfigura o espaço e as pessoas
criando um sertão de belezas superficiais, conquistando desse modo, uma poesia
íntegra com consciência de sua fugacidade e, com o perdão da palavra, de sua falsidade.
O diretor levou isso ao paroxismo em Casa de Areia, sem os mesmos resultados
fortes. Já seus documentários (Viva São João! e Outros (Doces) Bárbaros)
são tão epidérmicos quanto seus trabalhos de ficção e se equilibram entre o registro
burocrático e promocional e a beleza artificialmente produzida a partir de imagens
que se ancoram no fluxo da realidade, algo interessante em se tratando de documentário. A
diferença entre Andrucha Waddington e alguns de seus contemporâneos como Walter
Salles e José Henrique Fonseca é simples: seu trabalho tem plena consciência da
superfície da beleza de suas imagens e delas se ocupa com exemplar honestidade.
Isso não quer dizer que sua obra seja de todo admirável (não é), mas sua carreira
demonstrou alguma vitalidade que parecia que em algum momento poderia dar num
belo trabalho. É o que acontece finalmente agora com Maria Bethânia - Pedrinha
de Aruanda. De partida, o melhor filme de Andrucha Waddington
tem muita coisa a seu favor. Lembremos que um expediente tão (aparentemente) modesto
quanto o de posicionar uma câmera em frente a um cantor de música popular é um
procedimento certeiro porque a imagem que disso resulta automaticamente seduz
a quem vê. Recordemos também que a relação do artista popular com a sua própria
imagem tornou-se, do século XX para este, algo de importância fundamental, em
alguns casos tão especial quanto o repertório musical que dispõe. Pensemos agora
em Maria Bethânia: talvez seja ela, enquanto figura pública, a integrante mais
discreta dos “doces bárbaros” e por isso mesmo, a personagem mais interessante,
já que ela faz poucas declarações, é midiaticamente mais arredia e de todos eles
é a que o termo “intérprete de música popular” se adequa com mais desenvoltura.
Presença de palco marcante como Elisete Cardoso, de canto
trágico como Judy Garland, Bethânia é a “imagem” mais forte entre os baianos de
sua geração – não por acaso o conjunto de sua voz grave, seu cabelo cheio, seu
rosto comprido, seu nariz aquilino e seu domínio intimidante de palco seduziu
cineastas como Paulo César Saraceni (em O Desafio, cantando Carcará), Julio
Bressane (em Bethânia Bem de Perto – a Propósito de um Show), Jom Tob Azulay
(em Os Doces Bárbaros), Georges Gachot (Maria Bethânia - Música
é perfume) e Saravah (Pierre Barouch). Dito isto,
Andrucha Waddigton, que não é nem um pouco bobo, coloca sua câmera a serviço de
Maria Bethânia em seu aniversário de 60 anos em Santo Amaro da Purificação, cidade
natal da cantora na Bahia. Diferente de seus antecessores, Andrucha irá procurar
a Bethânia da intimidade, aquela pessoa real com a qual os outros filmes não cruzam
(ou cruzam muito pouco), preterida em relação à imagem forte da Bethânia artista
– uma figura que, convenhamos, intimida naturalmente todo cineasta que busca conhecê-la,
à exceção talvez de Saraceni (que a filmou cantando no Opinião em início de carreira
e que, talvez por isso mesmo, o fez com muita naturalidade, já que filmava uma
cantora talentosa, não um mito). A personagem Maria Bethânia serve muito bem ao
cinema, sua intransponibilidade a faz uma personagem autenticamente moderna, como
diriam alguns, uma “personagem fechada”. Uma imagem de performance sedutora que
ao mesmo tempo demonstra a incapacidade de quem a filma em dar conta de sua totalidade.
Maria Bethânia contém o desafio da imagem moderna. O
filme então, é um desafio pra Andrucha que, além de filmar a cantora, procura
também conhecer a Maria Bethânia filha de dona Canô e irmã de Caetano Veloso.
Seu outro filme com Bethânia, o documentário Outros (Doces) Bárbaros, vê
a cantora um tanto quanto misteriosa, confirmando a persona artística forte que
ela construiu durante a carreira. Em uma cena ela é a última a chegar aos ensaios,
muito objetivamente ocupava o estúdio e cantava de óculos escuros, conversava
pouco com seus companheiros e quando decidiu falar pra câmera, foram amenidades
durante um vôo, que só serviu para torná-la figura ainda mais distante – ou independente
- do grupo que ali era filmado. Dessa vez, Andrucha começa
com uma sequência de show. Temos portanto, a Maria Bethânia da qual estamos acostumados:
uma artista em seus domínios (no palco), não só uma cantora, mas uma intérprete
ao pé da letra. O diretor constrói a cena de modo a reforçar a aura mitológica
da personagem: câmera mais baixa, interessada nela não no público, por isso mesmo,
no show da artista, não no show como evento mais amplo. No fim dessa sequência,
temos um bolo de aniversário e um “parabéns pra você”. É disso que o filme vai
tratar a seguir: da experiência da cantora em completar sessenta anos de vida,
junta dos seus e de suas memórias. Essa é a aparente entrada do diretor Andrucha
Waddington na vida de Maria Bethânia. O documentário é relativamente
curto, e durante a projeção temos uma personagem que busca se revelar, falar da
infância, do precoce gosto pela arte e pelo espetáculo, passeia por sua cidade,
vai à cachoeira, etc. Essa personagem tem uma mãe (dona Canô) que não deixa de
falar dela de outro ponto de vista e que legitima de algum modo as memórias da
filha e diz admirá-la não por ser artista, mas por ser a pessoa que é; o irmão
(Caetano) partilha de alguns de seus sentimentos, sobretudo enquanto se relacionam
por meio da música. Existem na casa outras pessoas, outros familiares que só ajudam
a compor um quadro que reforça a presença, mesmo que só figurada, de uma família
que existe além da dimensão artística de seus dois integrantes mais célebres.
A química entre dona Canô, Caetano Veloso e Maria Bethânia
conduz a filmagem para um registro do encontro entre os três e as outras pessoas
que os circundam acabam por se tornar testemunhas, não personagens. Com a natural
capacidade ficcionalizante da câmera, o filme vai dar em música. E ela não serve
só como disposição de números musicais decadentistas, como em Coisa Mais Linda
de Paulo Thiago e tantos outros documentários que tratam de música como resquício
de saudade de um passado morto e enterrado. A relação que se estabelece entre
música, afetividade, memória e encenação é outra: a de memória viva. Tanto
que os momentos em que Bethânia, sua mãe e irmão cantam não se constituem
como “números musicais”, mas como prolongamento da conversa. Apesar
da aniversariante e protagonista dividir a cena com seu irmão e sua mãe, ela polariza
as atenções a todo momento. Em uma das sequências iniciais ela participa de uma
missa com sua mãe. Em uma missa, que os cantos são executados coletivamente, Maria
Bethânia se sobressai: emociona-se, chora, faz comentários atraindo a atenção
de todos. O mesmo acontece na mesa de jantar na casa de sua mãe: para se revelar,
Bethânia parece não se desvincular da necessidade de representar. Em
Maria Bethânia Pedrinha de Aruanda, a protagonista é a personagem de cinema
mais performática do ano. Em nenhum momento vemos separadas as personas da “Maria
Bethânia artista” com a da “Maria Bethânia pessoa comum”. Em um momento, em uma
viagem de carro para Santo Amaro, ela pergunta à Caetano “Sabe como Fernando Pessoa
chamava a lua?”, ele replica “ele não chamava a lua de lua?”, ela diz “chamava
de Nossa Senhora do Silêncio”. Essa conversa é reveladora da personalidade da
personagem, pois ela não opta só pela concepção prosaica das coisas (a lua só
como lua), mas pela dimensão poética, da representação (lua como Nossa Senhora
do Silêncio). É um pouco assim como a conhecemos em Pedrinha de Aruanda.
O documentário de Andrucha Waddigton tem interesse em apreender
como ela constrói sua persona entre duas dimensões geralmente vistas como opostas
que são a pública e a privada, sendo que a primeira é geralmente, na maior parte
dos documentários biográficos, tida como a “mais real”. Aqui o cineasta dissolve
essa fronteira. Ele prefere fazer um estudo de como Bethânia se dá a conhecer
do que de buscar na intimidade do lar de Bethânia, a verdade sobre quem a cantora
realmente seria. O que esse filme tem de semelhante aos outros trabalhos de Waddigton,
é que o cineasta busca compreender as coisas pela superfície, pela plasticidade
(alguns dirão, “estetização excessiva”), pelo potencial da representação – e talvez
da artificialidade - em trazer verdades na contramão da “profundidade”. O diretor
não tem a intenção, em nenhum momento, de “fuçar a intimidade”, de constranger
ou de afirmar com um plano que em seu registro emerge algo de realmente verídico
– muito pelo contrário. Sua estetização vem buscar as belezas da superfície e
de situações timidamente montadas. Seu filme respeita a Maria Bethânia mito (até
o reforça), porque entende que a única maneira de ver um pouco do que seria Maria
Bethânia é só por meio da verdade da Bethânia personagem. Waddington
acerta em cheio em fazer seu documentário uma busca das performances de seus personagens
– disfarçada de registro do corriqueiro – e adotar até um tom de certo lirismo,
logo em uma modalidade cinematográfica que carrega muitas vezes o peso de ser
escravo da realidade a partir de uma concepção estreita de realismo e verdade.
Se em outros filmes com Maria Bethânia tínhamos seu mistério impenetrável e a
força de sua presença que já colocava certa distância entre ela e a câmera, aqui
temos o reforço da Bethânia imagem, “personagem fechada”, só que sem medo de confrontá-la. Por
isso tudo, Maria Bethânia - Pedrinha de Aruanda é o documentário mais original
do ano até agora, a partir de questões sempre presentes nos filmes de Andrucha:
o que a imagem tem a dizer por si mesma, e qual beleza autêntica pode sair do
que é pura imagem? Maria Bethânia, sua interlocutura ideal, responde. Extraordinariamente.
Outubro de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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