eletrônica - debate
A Pedra do Reino:
Maravilhas fechadas em torno de si mesmas
por Luiz Soares Júnior

Sim, Pedra do Reino é feérico, inventivo, fulgor do ritmo e da pirueta. Mas a impressão que nos dá é que esse cosmo obedece a uma cartilha de maravilhas, a um método de perfeição, a um rigor de enxadrista que pretende dar conta perfeitamente de todos os fantasmas, símbolos e conceitos do seu realizador. Um método demasiado rígido, algo próximo do academicismo. Não sopra dessa obra nenhuma lufada de ar, nenhuma abertura ao nosso mundo: Luiz Fernando Carvalho está ocupado demais em comprovar mais uma tese sobre a identidade brasileira, agora em fluxo alucinatório e preciosismo carnavalesco, para se dar conta da existência do espectador.

Quando falo isso, não falo em nome daqueles que defendem uma arte mais acessível, popular, com um implícito desprezo (por mais paradoxal que isso pareça) pela representação popular. Falo contra a superafetação, a superexposição da Pedra do Reino a um certo culto do ouropel, do enfeite pelo enfeite – que, aliás, nem é tão estranho à nossa cultura, inclusive popular. Inclusive e sobretudo televisiva. A obra de arte é frágil, delicada, especialmente quando usa a imagem, que tem com a  realidade uma ligação mais ontologicamente legítima que qualquer outro objeto. Não se pode submetê-la ao peso de todos nossos princípios e símbolos, sob o risco dela desabar, como um carro alegórico demasiado megalômano, que não passa pelos arcos da avenida.

Assim, Pedra do Reino é impopular, inacessível não por um suposto hermetismo da linguagem; é inacessível porque é pesado, artificioso, pedante, heteróclito, porque o seu culto da alegoria invalida qualquer esforço intelectual por parte do espectador para participar da obra. Luiz Fernando Carvalho, o autor como rei, quer dar conta de todo universo simbólico, e recusa nessa aventura  a participação decisiva do imaginário do Outro; não, não falo do Outro como o espelho refugado do Mesmo, falo daquele sujeito coitado que chega do trabalho e se esparrama no sofá, falo do intelectual orgânico que passou o dia enfiado numa tese que não sai, falo de qualquer um de nós. Não há um único espaço vago deixado para a imaginação destes. Carvalho, na elaboração de seu sistema de maravilhas hermeticamente fechado, interdita-nos o acesso à única planície reservada a toda fecundação simbólica: a minha cabeça.

Não há aura possível numa obra enclausurada em si mesma; até porque toda obra que se queira preservar, que se queira eterna, paradoxalmente deve sua eternidade ao concurso do tempo; do tempo cíclico, geracional, do julgamento de cada um de nós, nos anos que se seguem. A obra que reserva unicamente para si a solução e deflagração de todos os seus mistérios é uma obra natimorta.

Qualquer representação artística que trabalhe com uma certa idéia da arte popular, de uma arte supostamente alicerçada numa certa idéia mítica do popular, tem de se situar numa elaboração formal que estabeleça uma dialética, um conflito com o objeto apresentado. Vejam a solução de Paradjanov num filme como A Cor da Romã (ao lado), por exemplo. Ele trabalha igualmente com os mitos, os símbolos, as cristalizações alegóricas russas. Mas em nenhum momento Paradjanov se contenta com seu objeto, se espoja numa complacência deslumbrada – com os artifícios e desmesuras típicos, aliás, deste mundo, típicos de qualquer folclore, caucasiano ou nordestino.

O maravilhoso, o pitoresco do objeto apresentado se situa num cadre hierático, num racionalismo do plano fixo que se recusa a compactuar com a exuberância do objeto. Paradjanov luta com seu objeto, com a temática escolhida por ele: ao invés da exaltação indiscriminada e dialeticamente nula do objeto, do folclore como “dádiva da origem”, temos a situação do mundo apresentado num estilo que aparentemente é exterior a ele: seco, rígido, uma suíte de tableauxs vivants que refuta o princípio vitalista associado a qualquer idéia de cultura popular.

É justamente este conflito entre a forma e o objeto, essa “denúncia” do objeto inerente a toda elaboração moderna de arte que falta a Pedra do Reino. É como se, do limiar do seu mundo encantado, o diretor se contentasse com a reelaboração infinita de arabescos destinados a eternizá-lo. Assim, Pedra do Reino se deixa ofuscar pelo brilho de suas próprias lantejoulas e não cumpre a mediação necessária a toda obra de arte moderna: a consciência de sua situação num mundo maior, mais vasto e complexo que os limites de seu narcicismo.

Repito: a crítica de que a minissérie é anti-popular, além de cheirar a reacionarismo disfarçado, é falsa. Essa mistureba de estilos é típica da cultura popular (vide o romanceiro nordestino, o cordel); esse culto do artifício grandiloqüente é popular (vide  a escola de samba, nossa ópera). Mas isso não basta para identificar ninguém, para instituir um autor, e parece ser essa a pretensão. O que falta é a dialética necessária a isso, a crítica ao “dado” (a cultura popular assumida, com seus ouropéis  e exageros), à representação puramente passiva, osmótica do que seria o imaginário do povo.

À desmesura do popular (o dado, o já sabido), falta um contraponto que permita o exercício do imaginário e da intelecção por parte deste Outro que, repito, apodrece na sua poltrona todos os dias e, comumente, “não quer saber de pensar, mas de se divertir”. Paradoxalmente, LFC reforça essa entropia. A questão é que nossa imagem televisiva é tão mísera, tão indigente de invenção que nos desacostumamos até de ver nosso próprio ouropel, nossa lantejoula, algo que faz parte de nossa criação mais originária. Isso só nos é permitido uma vez por ano, no carnaval, e ainda assim a peso de ouro.

Talvez esse seja o ponto positivo da série: chamar nossa preguiçosa atenção para um maneirismo “típico” do nosso ser brasileiro (embora toda menção a tipicidade me cause arrepios, mas vá lá). Mas arte é sempre um passo além do típico, do “dado”, da cultura popular como reino do artifício, é integração e superação disso numa subjetividade aberta, dinâmica, transcendental. E me parece que esse passo não foi dado.

Claro que o alcance dessa análise é limitado, pois se ampara na detecção de certas determinações – aliás, toda análise é limitada. Ela se apóia na subsunção a critérios precisos, mesmo subjetivos, em uma situação conceitual específica. A argumentação é que não pode ser subjetiva, mas tudo começa daí.

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