ensaios
O último primeiro cinema
As Aventuras de Paulo Bruscky, de Gabriel Mascaro
por Fábio Andrade

- As Aventuras de Paulo Bruscky, de Gabriel Mascaro, é um filme sobre a (história da) realização cinematográfica:

- Um filme de making of: um filme sobre se fazer um filme, embora muito distante de um Noite Americana, de François Truffaut. "É como se fosse o cinema dentro do cinema", diz Paulo Bruscky. Talvez As Aventuras de Paulo Bruscky seja o único filme de making of realmente possível - pelo simples motivo de que nem o filme nem o making of, de fato, existem. Eles se igualam em sua inexistência;

- A inevitável teleologia de uma projeção que corre do início ao fim: o filme nasce do pré-mundo, da criação de uma personagem, e vai até o pós-mundo, soltando a personagem na estratosfera. Todo cinema é linear;

- A personagem no documentário: Paulo Bruscky, o protagonista, não é Paulo Bruscky, o artista, pessoa física - duplicidade que é ressaltada pelo doppelganger polivalente virtual do Second Life. Assim como o mundo habitado, a personagem Paulo Bruscky nasce com o começo do filme, e termina com seu final, mesmo existindo fora dele. Uma vez feito o filme, Paulo Bruscky, o protagonista, deixa de ser parte do filme e se torna parte do mundo - logo, parte de tudo que está fora do filme - cumprindo a "desmaterialização e a rematerialização" do sujeito pelo documentário;

- Um filme de Lumière: em dado momento, Paulo Bruscky fala de um projeto pré-lumièriano de fazer um filme sem câmera, sem filme, com imagens presas aos batentes do trilho do trem, vistas em movimento pela velocidade do próprio trem. As Aventuras de Paulo Bruscky é a realização metafórica e deformada deste filme. Como Lumière, Mascaro precisa "inventar" um novo meio para registrar uma nova experiência de mundo, e seu filme sobrevive no mesmo limite entre o registro - do mundo diegético e do não-diegético, hoje - e a invenção. Ou será a invenção do meio que determina esta nova experiência de mundo? "Na verdade, eu faço vídeos para as pessoas que querem ter um registro desta vida aqui": a frase, dita pelo duplo de Gabriel Mascaro dentro do filme, reafirma a aproximação com Lumière. E como o mundo em questão é moldável, não há limites para a câmera: ela filma entrevistas sub-aquáticas, atravessa paredes, voa, morre, ressuscita. Não há imagem que não possa ser feita, "não existem mais projetos inviáveis"; ;

- "O último pintor expressionista": a alcunha dada a Lumière por Jean-Luc Godard - e trabalhada por Jacques Aumont em "O Olho Interminável" - partia do desejo impressionista cumprido pelo cineasta de captar o movimento do mundo, a multiplicidade das folhas, as variações de luz. O cinema era a última tábua no caixão do impressionismo, e o filme em Second Life é a última perversão desta idéia. Em As Aventuras de Paulo Bruscky, Gabriel Mascaro trabalha como um impressionista do simulacro impressionista;

- Um filme de viagem: em era de telejornalismo onipresente, será o Gabriel Mascaro de As Aventuras de Paulo Bruscky o último diretor a manter a tradição dos primeiros filmes de viagem? "A sobrevivência do cinema está hoje na capacidade do jogo que ele pode criar no interior de um sentimento geral de saturação em relação às imagens. Jogo que consiste em atrasar pelo maior tempo possível (alguns segundos) a tomada de poder do visto pelo já-visto; portanto, mostrar o que não foi mostrado antes - ao menos na tela" (Serge Daney);

- O documentário que falseia a realidade: em época de simulacros, é necessário forjar uma realidade claramente artificial para se chegar a uma impressão "mais real que o real". Como nos anacronismos de Flaherty (a primitiva caça às focas que já não era mais praticada na época da filmagem; a pesca de tubarão onde não existem mais tubarões), a invenção se encontra à reconstituição para melhor dar conta do mundo. É a mentira que mais se aproxima da verdade. "Os historiadores nem sempre falam a verdade, então é a arte que deixa um registro da História mais bem feito, mais real";

- Um documentário de estúdio: realizar um filme em Second Life é aproveitar a ampla possibilidade de se moldar um mundo e documentá-lo em sua inteireza. É talvez o mais próximo que se possa chegar de um documentário feito aos moldes do cinema de estúdio;

- Insolência sem esvaziamento: As Aventuras de Paulo Bruscky é um filme tão auto-reflexivo quanto auto-irônico: a reflexão profunda devolve sempre à brutalidade da matéria - o sexo, a dança, a movimentação irrestrita, os limites intransponíveis do corpo e da matéria em uma realidade que não é corpórea ou material. "Eu gosto de olhar para as coisas inúteis que não servem para nada", diz o protagonista. Como em Hong Sang-soo, todo o arcabouço conceitual e reflexivo leva à constatação de que os gestos humanos são grandes bolhas de banalidade, determinados por ensejos e desejos bem mais concretos e auto-suficientes. As Aventuras de Paulo Bruscky realiza o sonho do conceito de alcançar a banalidade.

Maio de 2012

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