in loco - III festival de paulínia

Encerramento: Indústria de ilusão
por Paulo Santos Lima

400 contra 1, que encerrou o III Festival de Cinema de Paulínia, é um filme-questão. Involuntariamente. Na verdade, esse longa de Caco Souza, do qual falo mais adiante, sugere o quanto estamos perdidos a respeito dos projetos de cinema. Porque, como diz a palavra, projeto é esperado, pretendido, e sofremos de uma certa indecisão moral sobre qual cinema a ser feito. Temos o exemplo feliz de um Julio Bressane, que, à parte seu gênio, faz obras cujo projeto é muito bem justificado pelo que chega na tela. Quando a intenção é por algo mais comunicativo com grandes platéias, fica aparente uma certa imponderabilidade. Não estou, aqui, falando de bem ou mal feito, mas sim do que leva um trabalho a comover ou não o grande público. E talvez nem os cineastas saibam: Cidade de Deus foi um sucesso nacional sem que, em princípio, Meirelles quisesse isso; Tropa de Elite é dirigido por um diretor cujo papel é flutuante, entre o impacto marketeiro e a pessoalidade intencional. Eu, particularmente, não sei qual régua utilizar para determinar “qual tipo de cinema” corresponde filme x ou y. Tudo aqui parece autoral, ou é tachado como tal, inclusive os trabalhos de Daniel Filho e as aberrações de Moacyr Góes – ou, Moacyr Góes é destratado não pelo seu mau cinema, mas sim por ser um quase artesão de linha de montagem.

Empreitada e tanto, talvez mentecapta, esta de querer encontrar a ponta do fio que tece a malha de filmes que (cor)respondem à demanda. Até porque... qual a demanda? Para o produtor de um filme de Julio Bressane, a exigência é x, e tem seu retorno garantido, com um pequeno, mas fiel público de seus filmes. O das comédias Globofilmes, há quem assista seus trabalhos também. Porém, caso contrário, não faz diferença: ninguém sai perdendo no cinema nacional. Talvez só o gênio criador do cineasta, se seu filme não encontra pessoas do outro lado. Ao mesmo tempo, a tal autoria que timbra os cineastas nacionais, inclusive engordando sua arrogância e o equívoco de que são artistas livres e, por isso, nem sempre compreendidos (deixemos esse papel de gênios pouco compreendidos apenas para quem merece o termo: Sganzerla, Glauber e uma meia dúzia), alimenta essa idéia de que não precisam de público. As exceções, ainda bem, existem em bom atacado – mas são sufocadas pelo tom geral.

Sejamos sensatos: não há ainda um punhado de paradigmas sobre qual trilho cada determinado tipo de cinema tem de seguir. E nem há por que ter. Não há arte possível sem debate (coletivo ou individual, aquele no qual o realizador usa o espelho não para alimentar seu ego, mas para desmascarar as suas aflições cineastas). Sem debate, os filmes que se beneficiam de dinheiro público não são obrigados a se justificarem em praça pública, sob o risco de tomates e ovos atirados, como mereciam alguns dos exibidos neste III Festival de Paulínia. Passar filmes medianos pode ser fruto de um contexto, de um momento, mas fingir que tudo está às mil maravilhas, quase como a Alemanha nazista às vésperas da invasão soviética ou o Brasil de Getúlio, o do “O Petróleo é Nosso”, é ampliar a planta do labirinto. Paulínia, com o capital que possui, poderia arriscar, procurar uma outra ética, outro caminho, que não o da ilusão, esse termo que serve muito bem – e com alguns ótimos resultados – apenas em Hollywood, EUA.

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Assim fica mais fácil compreender por que, nas premiações de Paulínia, o filme de projeto mais bem executado e mais rigorosamente comprometido com uma ética para levar uma determinada moral (princípios) à tela, As Cartas Psicografadas por Chico Xavier, não tenha sido mencionado. Os grandes vencedores da noite foram Bróder, interessante por ser um falso filme social feito por alguém à margem, e 5x Favela, declaradamente um filme feito por quem está na borda do sistema. Ora, não existe centro e periferia no cinema nacional: o desnorteamento criou um outro mapa, sem norte e sul, muito menos leste e oeste, e uma boa parte aproveita para ir a uma ponta na qual podem se dizer cineastas da margem. Candeias, cadê você? Assim como o cinema de Padilha, os filmes de Jeferson De também usam a identidade dos que estão avessos à elite, ao oficial. São filmes com alguma força, inclusive se comparados aos discursos classe média mequetrefes de cineastas classe média que pensam médio (um criador pode até ser médio como resultado, mas jamais como esforço pessoal). O caso de 5x Favela é mais complicado, porque feito por realizadores menos favorecidos, bastante empenhados, vale dizer, mas que repetem o cinema mais conservador realizado no Brasil nos últimos anos, esse que visita a periferia para mostrá-la de duas formas: lugar da humanidade ou da barbárie. Esses realizadores, premiadíssimos, filmando no estilo Cacá Diegues, oficinas e tal, não filmam de dentro, mas sim assumem a mesma imagem (e daí papel) de visitantes.

Ainda sobre os premiados, os documentários Lixo Extraordinário, escolhido pelo público, e Leite e Ferro, pelo júri, deixam clara a inclinação por um cinema “social”. Aí volta-se para uma questão antiga, de anos, sobre como lidamos com a herança do Cinema Novo e a demanda atual pela “qualidade”, pela profissionalização, pelo cinema “fácil”, de grande público. As bases não são concretas, ou não estão – ou não carecem de ser definidas. Se Paulínia coloca produções suas e de fora do pólo na sua vitrine, a fim de fertilizar uma dinâmica de fluxo de lançamentos (bem-sucedidos), talvez ela esteja arriscando tudo, como os protótipos de foguetes que eram lançados ao erro, explosões e fiascos aéreos, até que conseguissem fazer a primeira nave propulsada ir ao alto espaço. Mas a NASA tinha um projeto acertado. Querer fomentar a produção de cinema de público e seu mercado no Brasil é como querer ir à Lua sem que se saiba como: se a pé, de bicicleta, trem, avião, escada, corda, ou de carona. Um bom começo, para Paulínia, seu pólo e festival, talvez seja barrar os filmes inúteis, aberrações visuais, que só sedimentam idéias prontas sobre a precariedade dos filmes nacionais.

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400 contra 1, de Caco Souza (São Paulo, 2010)

Voltando ao filme exibido na noite de encerramento. Filme bem típico de nosso momento, com cineasta visivelmente cinéfilo, mas bastante perdido, utilizando uma lógica de colagem cuja soma só adensa a confusão narrativa, com narrador tentando a tarefa inglória de organizar o caos, o longa captura para si tanto elementos do nosso cinema até alguns itens do cinema de gênero americano. O tema é a história de William da Silva Lima, e da organização criminosa que surgiu nos anos 70 como resultado da fusão entre repressão política e banditismo. Parte-se da referência ao Cinema Novo (torta, como boa parte do que foi reverenciado e negado do CN a partir dos anos 90) para chegar à estética fashion que até deu certo em Cidade de Deus, que era já uma transposição “à brasileira” do cinema de gângster americano. Nada contra as referências (Tarantino puxa todo tipo de cinema e faz maravilhas, criando um novo estilo mais a ver com o presente do que com as emulações), mas neste longa de Caco Souza, soma de estilhaços orientados por vinhetas e narração estilosas, temos um dos piores trabalhos do cinema brasileiro recente. Vejamos bem: ator de renome, tema “forte”, ritmo ágil, produção bem cuidada (onerosa) e o desastre total. Por quê? Uma dica é o diretor. Por isso, ao colocar 3,5 porcarias de filmes em sua grade, o Festival de Paulínia desvaloriza a importância do diretor, que até pode atenuar as falhas de roteiro que ainda parecem quase onipresentes em boa parte das obras de enredo. 400 contra 1 está, na verdade, contra todos. Mas não esconde isso.

Julho de 2010

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