in loco - III festival de paulínia
Dia
6: Curto terror que ofusca os longas
por Paulo Santos Lima
Quem Vai Comer
Minha Mulher,
de Rodrigo Bittencourt (São Paulo, 2010)
Não
há como não voltar à curadoria do Festival de Paulínia ao assistir
a outro filme ultrajante, este Quem Vai Comer Minha Mulher?, de Rodrigo Bittencourt. Afinal, o ato da
escolha me parece pior que o filme, em si. Um festival
de cinema que promete tanto pelo cinema brasileiro, cujo discurso
alude que fomentar a produção de filmes é uma benfeitoria ao país,
não pode escolher a baixaria. Pode-se aviltar que não há bons
longas concluídos recentemente. Pode-se até dizer que, se há curtas
bons, eles não foram inscritos. Mas é possível dizer o “não”.
Vendo dois filmes mequetrefes em dois dias, e mais outro que passou
no primeiro dia de mostra competitiva, parece que o Festival de
Paulínia está de gozação.
Segundo a Folha de S. Paulo, o diretor do festival,
Ivan Melo, teria deixado de fora filmes que “define como ‘pretensiosos’,
sem qualquer possibilidade de comunicação com o público e, a seu
ver, de discutível valor artístico” (sic). Ora, esses três filmes
não são isso? Ou fazer um trabalho e escancará-lo ao público,
sem nenhum pudor ou senso crítico, não seria também uma pretensão,
uma arrogância letal? E o que determina um canal entre espectador
e obra? Caso não haja comunicação, não é arte? Creio que Jean-Luc
Godard desmonte esse pensamento. O que Ivan, ou o Festival de
Paulínia, está defendendo, me parece, é algo mais a ver com uma
idéia de cultura, não de arte. Esse conceito, sociológico, de
cultura é tudo que menos precisamos hoje, para o nosso cinema,
pois é só isso que ouvimos, grosso modo, nos eventos cinematográficos
e saídos de boa parte das bocas de pessoas envolvidas em cinema. Ainda
mais grave é que esse discurso, que é o da cristalização, o do
“modelo”, não se justifica. É o que ocorre em Paulínia quando
exibe aberrações amadorísticas e canalhas, como o curta deste
sexto dia, ou, usando palavras mais suaves, apresenta algo que
se volta contra a própria imagem séria que o festival quer transparecer.
Ainda sobre a matéria da Folha, a repórter Ana
Paula Sousa diz que "mesmo sem a seleção ideal, Paulínia,
neste ano, conseguiu ter uma lista de filmes mais atraente do
que boa parte dos festivais brasileiros. Tanto é assim que credenciou
nada menos que 140 jornalistas de todo o país". Atraente
a quem? Aos jornalistas ou a ela? Porque ser mais atraente, seja
a ela ou aos jornalistas, não torna os filmes da “lista atraente”
melhores. Só agrava a situação geral, de quem assiste, de quem
opina e de quem faz e de quem exibe os filmes.
Vamos, então, aos filmes do dia.
***
Malu de Bicicleta,
de Flávio Tambellini (Rio de Janeiro, 2010)
Programa Casé,
de Estevão Ciavatta (Rio de Janeiro, 2010)
Sob o risco dos olhos descalibrados pela enxurrada
de filmes médios, outros fracos, três medonhos, fato é que a comédia
romântica Malu de Bicicleta conta com um belo texto, fundamental
para o seu humor mais verbal, nada físico, e que seu diretor assina
uma encenação que pode sem medo se chamar de adequada. É a história
de um mulherengo (Marcelo Serrado), que de repente encontra o
amor da sua vida, a garota do título (Fernanda de Freitas), e
se apaixona a ponto de se casar. Sendo ela bem livre, surgirá
o ciúme, e consequentemente o rapaz entrará numa espiral.
O
que estraga um bocado o filme é que as pistas (falsas) lançadas
ao longo da história resultam tolas, tornando-se uma poluição
dispersiva para a muito boa fluência com a qual as coisas avançam
no enredo. Além disso, é mais outro filme que traz
um problema crônico do nosso cinema mais leve: um comedimento
tanto no tratamento quanto no enredo. Não exijamos um Herzog,
mas Tambellini anuncia algo que acaba não sendo desenvolvido,
que é uma interessante inclinação ao drama, quando o homem vai
pirando de ciúmes. Quando isso aparece, mesmo suave, deixa claro
que o filme encontraria uma forma tão maluca quanto seu personagem.
Ao optar pela segurança, Tambellini realiza o já realizado. Mas,
convenhamos, num país com um cinema de tradição tão fracote para
uma comédia mais corrosiva ou mesmo feérica, talvez tenha sido
de bom tom o diretor preferir a boa direção de ator em texto bem
escrito.
Já
Programa Casé poderia se chamar “Família Casé”. Não que
o documentário não seja honesto, pelo contrário: tanto o filme
quanto seu realizador, que subiu ao palco para contar sobre seu
trabalho, deixam clara a ligação afetiva com o biografado, o grande
radialista Ademar Casé. O longa utiliza o áudio de várias entrevistas
dele com o encaixe livre de imagens que ilustram (às vezes mais
acompanham que reiteram) o comentário. O que vale dizer aqui é
que o filme não é ruim, longe disso, mas abre a questão sobre
a necessidade de cineastas em encontrar ou falar do extraordinário.
Mesmo os filmes de família mais intimistas parecem tornar especial,
acima, sobrenatural, o que mostra. O cinema, claro, tem essa capacidade
de, por ser imagem, transformar o que é filmado, escolhido pelo
delimitado recorte do plano, algo extraordinário. Mas vale, a
título de contrapor este Programa Casé, que tanto reitera
a importância histórica de Ademar Casé, desafiar os cineastas
a procurar pelo comum – não o comum extraordinário, ou o comum
típico (que já é, pela própria confirmação de naturalidade, um
valor), mas o comum ordinário, o comum que talvez seja infilmável.
Julho de 2010
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