in loco - III festival de paulínia
Dia 3: Diálogo
consigo próprio
por Paulo Santos Lima
Estação,
de Márcia Faria (São Paulo, 2010)
São Paulo Companhia de Dança,
de Evaldo Mocarzel (São Paulo, 2010)
5x Favela, Agora por Nós Mesmos, de vários diretores (Rio
de Janeiro, 2010)
Os três filmes do dia trouxeram salientes diálogos
com outros cinemas – diálogo bastante atrasado em todos eles,
ainda que pelo menos um (o documentário de Evaldo Mocarzel) converse
com uma tradição e não com uma tendência ou estética contemporânea,
como ocorre com o curta Estação, ou com uma questão histórica,
como está em 5x Favela. Esses diálogos puxam de volta a
discussão sobre a tal representatividade do cinema brasileiro,
aquela que ouvimos saindo de bocas cineastas nacionais sobre termos
de fazer “o nosso cinema”, um cinema “tipicamente brasileiro”.
Esse específico acaba justificando muita porcaria que vem sendo
filmada. O problema não é o quanto, mas sim como essas influências
estrangeiras determinam um filme brasileiro.
Pode-se
dizer, no exemplo do curta Estação, que a matriz parece
ser o cinema asiático dos anos 2000. Temos uma moça (Caroline
Abras) que mora na rodoviária do Tietê, mente para a mãe que está
bem abastada na cidade grande, faz de toucador o banheiro do lugar,
toma banho de gato etc. Isso nos chega num registro mínimo, mas
a composição cênica, se olharmos mais atentamente, é até engordurada.
A soma de momentos prosaicos e de tempos mortos, muito a ver aqui,
não deixa de ser também um caminho fácil para a construção de
um efeito; um vale-tudo que permite o uso de qualquer cena que
justifique uma imagem. É para efeito que surgem situações como
a de uma mulher que deixa no colo da moça um aquário com peixes
esquisitos, ou ela ir a um karaokê no qual canta uma música –
a primeira compondo uma imagem tipo Tsai Ming-liang; e a outra,
neo-disco, um correlato enfraquecido de Hou Hsiao-hsien. Está
claro o esmero de Márcia Faria, seu cuidado nos enquadramentos,
no jogo entre som e imagem. Mas o não-acontecimento é uma solução
fácil, hoje. Uma opção que justifica uma rarefação que pode bem
ser uma falta de idéias – e a imagem precisa de boas idéias para
ser algo além daquilo que poderíamos chamar de beleza. Estação
é bonito, conta com atriz bonita e talentosa, alguns momentos
também bonitos, mas parece mesmo um modelo de currículo para o
cineasta apresentar suas habilidades.
O
longa de Evaldo Mocarzel, por sua vez, tem num formalismo extremo
um caminho para o discurso direto. Sim, parece uma contradição,
mas tudo faz total sentido aqui: é o árduo trabalho de uma companhia
de dança, sobretudo naquilo que afeta os corpos dos bailarinos,
num processo de preparação que surte numa experiência que é a
da arte – o movimento possibilitando uma transcendência do próprio
ser humano e sua condição física. É ir ao rebuscamento, senão
“barroquismo” da forma para, assim, encontrar a clareira do discurso,
a limpidez. Para um cineasta que dirige tantos filmes quanto procura
justificá-los por um motivo “artístico” – e não à toa, em meio
a alguns filmes bem problemáticos, há alguns muito bons, com algumas
passagens extraordinárias –, tudo aqui se justifica. São Paulo
Companhia de Dança não sofre da conveniente aleatoriedade
do formalismo artístico, aquele que não nos dá espaço para duvidarmos
de sua composição – imaginemos uma pintura contemporânea avant-garde,
sem que tenhamos referencial para analisá-la. Cada escolha de
imagem do filme parece muito bem justificada.
A montagem de Marcelo Moraes, sobretudo, é um
grande feito. Mocarzel pediu a ele um trabalho todo estruturado
em falsos raccords, com planos ora interligados por movimentos
semelhantes de câmera, ora por elementos deslocando-se semelhantes
no quadro, ora por elementos dispostos no quadro. O efeito dessa
montagem é o de uma narratividade extraordinária, num discurso
que está contando as atividades cotidianas da companhia, entre
ensaios, treinamento hard e apresentação ao público.
Outra recorrência comum à matriz que Mocarzel parece estar
dentro (a das artes plásticas e contemplação de formas e movimento
que rendeu algo notável nos anos 20 e que chega agora com alguns
maus exemplos afins da videoarte) é o da atenção ao detalhe. Aqui,
é o dos corpos, dobras, curvas, machucados nos pés, sapatilhas
estouradas, piso, panos etc. Não poderia ser outra coisa: este
documentário fala de um grupo que, efetivamente, trabalha com
o corpo, e este sofrendo o preço físico pelo uso extremo. Num
filme extremamente formalista no uso do som e do que filma, podendo
estar imerso na abstração total das linhas, São Paulo Companhia
de Dança chega, como se fosse um cinema direto, ao seu assunto.
5xFavela:
Agora por Nós Mesmos é bem mais interessante
pelo que lança de questões. Sobre o filme, temos um longa com
cinco episódios, dois deles dirigidos por dois cineastas e os
outros, por um. Todos são moradores de favelas cariocas e aprenderam
(satisfatoriamente, diga-se) a filmar. As histórias mostram luz
no fim do túnel, ou procuram trazer a realidade violenta dos morros
para, em seguida, transcendê-la. Seriam filmes com temática de
exceção, caso já não houvesse esse tipo de filmes feitos pelos
cineastas classe média. Igualmente, o resultado visual e dramatúrgico
é total GloboFilmes, ou O2 – ou seja, a matriz organizadora e
orientadora desses cinco curtas é o que vem sendo feito, grosso
modo, desde Palace 2. O enredo e as situações, sobretudo
o humor, são irmãos diretos da teledramaturgia.
O que os cineastas e atores falaram na bacana
(porque sincera) coletiva de imprensa foi que, finalmente, eles
podiam se ver na tela. Isso me lembra uma vez, no primeiro ano
das oficinas Kinoforum, que alguns dos trabalhos realizados pelos
moradores da periferia eram reproduções dos filmes de gângster
norte-americanos. Nada estranho: os filmes de Hollywood fazem
parte do cotidiano desses realizadores – assim como as novelas
da Globo, os programas cômicos da TV, os Nike Air etc. Essa cultura
“genuína” brasileira parece muito um discurso do poder, oficial,
que ainda professa por uma (falsa) necessidade de reencontrarmos
nossas origens para, assim, encontrarmos nossa identidade, sabermos
“quem somos”. Ora, somos frutos do nosso tempo, atingidos pelo
entrelaçamento de valores, histórias, experiências humanas e meios.
É,
sim, bastante válido resistirmos a essa “contaminação”, mas de
uma forma dialética, e professando por uma situação de pureza
que só um mentecapto acharia crível. O que não dá é ouvir novos
artistas militando a favor da justa representação de si próprios
quando, na verdade, reproduzem um modelo vigente, reconhecido
e de caligrafia do “outro”. As imagens que formaram esses sete
realizadores são as mesmas feitas pelo “outro lado” e que são
assistidas pelas outras classes sociais. Claro, ficou evidente,
na coletiva, uma sinceridade tamanha (e rara) quando eles defenderam
suas opções por fugir ao estereótipo da favela como espaço de
violências etc. Eles foram verdadeiros, mas já chegam num momento
em que o avesso ao tal “modelo Cidade de Deus” já foi lançado
pela classe média cinematográfica, pela TV (vide Cidade dos
Homens), pelos noticiários, pelas ONGs etc.
Agora por Nós Mesmos...
o subtítulo abre outros problemas. Carlos Diegues, além de coproduzir,
coordenou o projeto, e, de certo modo, retomou Cinco Vezes
Favela, filme coletivo de 1962, financiado pelo CPC, no qual
Cacá fizera um dos curtas, Escola de Samba Alegria de Viver.
O resultado e o astral de Diegues nem parecia ser o de crítica
ao outro trabalho, pelo contrário, mas está claro que, ao se colocar
“agora por nós mesmos”, o filme anterior ganha um julgamento.
Julgamento complicado, porque o produto daquela geração de intelectuais
de esquerda de 1962 era justamente encontrar um meio de falar
e fazer algo novo. Formalmente até inexiste qualquer radicalismo
formal nesse clássico dos anos 60, mas os propósitos de formação
crítica e encontro com um universo pouco conhecido das elites
era algo de vanguarda, até. 5x Favela: Agora por Nós Mesmos
surge num momento em que tudo já foi assimilado e que, indesviavelmente,
o reprocessamento é uma realidade. Os descobertos no Cinco
Vezes Favela de 1962 assumem o lugar de quem filmava para
encontrar seu próprio espelho, não o outro. Talvez porque, na
situação que apaga as diferenças para se criar um corpo uno, esses
realizadores intuem, mas não encontram um conflito. Essa imagem
neutra que idealiza uma relação entre classes e entre diferenças
é a imagem oficial, ou a que mais é conveniente ao poder. Esses
jovens realizadores, no fim das contas, endossaram o discurso
que, talvez, menos os represente. Ou os represente – aí é que
está o problema desse projeto.
Julho de 2010
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