in loco - III festival de paulínia
Dia 2: A
imagem perdida e a imagem encontrada
por Paulo Santos Lima
As Doze Estrelas,
de Luiz Alberto Pereira (São Paulo, 2010)
Tendo
assistido, no dia seguinte, à coletiva com diretor e elenco (experiência
inenarrável, diga-se), fica clara a distância entre o que é falado
sobre o filme e o que é a obra em si. Luiz Alberto
Pereira justifica uma futura má reação ao seu filme porque seu
projeto é de cinema popular. O diretor escuda a sua obra a partir
de seu princípio, e não de sua conclusão; legitima todas as bobagens
artísticas que fez pelo projeto, que, em princípio, bem poderia
ser um filme fora da correnteza – e bastante interessante por
isso. Mas, já neste princípio, por repertório ignóbil e rasura
criativa, está tudo arruinado, antes mesmo da realização. Um bom
cineasta até poderia salvar o projeto, talvez, levando a história
e a forma à loucura, o que Pereira até tenta, insatisfatoriamente,
fazer no final – mas que, no fim das contas, parece mais ser apenas
uma amplificação dos garranchos que já apareciam desde o primeiro
minuto.
A tal história débil fala de um astrólogo em crise
pessoal, Herculano (Leonardo Brício), que recebe a visita do Destino
(Paulo Betti), este lhe aconselhando como lidar com um trabalho
no qual terá de entrevistar 12 atrizes (Lívia Guerra, Paula Franco,
Mylla Christie, Carla Regina, Leona Cavalli, Rosane Mulholland,
Martha Meola etc) de signos diferentes, para uma telenovela. Com
cada uma, ele terá uma experiência sui generis, a ver com
cada um dos signos astrológicos – ou seja, encontrará duas geminianas,
uma ariana doida, uma leonina altiva etc., todas representando
o que há de mais óbvio e conhecido sobre o assunto – o que, na
prática da realização, é um trabalho de significação. Terá, ainda,
no meio disso, uma descoberta sobre si próprio e de como temos
de deixar o destino nos guiar.
Nem
vale a pena discorrer mais sobre o enredo. Estamos num tipo de
auto-ajuda/cômico/trash/chanchadesca, que, na conclusão, soa mística
e medieval. Esta é a ponta de um iceberg de problemas: más escolhas,
um aparente oportunismo, mão ruim para a escrita do roteiro, visão
de mundo simplória. O diretor usa atores renomados, coloca nuas
algumas atrizes de corpo bem delineado, vai a um tema de apelo
popular, opta pela raridade de uma comédia mais escrachada e direta.
É uma questão de gosto pessoal, mas não há como deixar de lado
a medida do que e como tem de ser mostrado num filme. Homem transformando-se
em gato preto, deixando pétalas num labirinto de isopor, correndo
seminu, virando menino... enfim, As Doze Estrelas é brega,
pois é cafona também aquilo que escorrega pelo excesso, pela reiteração
hemorrágica, pelo adorno. A má medida, que está, inclusive, na
escolha do lugar onde se coloca a câmera, na falta de senso crítico
para achar que um roteiro ou a preparação de um ator está bom...
um grau torto para observar as coisas, das que são filmadas às
que aparecem reproduzidas na tela. Nem Paulo Betti parece ter
entendido o confuso filme, pois disse, na mesma coletiva, que
achava que seu personagem era a Morte.
Um filme morto. Uma obra que assassina outros trabalhos, pela
sua força de descalibragem do olhar. Sua
presença na programação abre precedentes perigosíssimos, pois
a barbeiragem de uma curadoria é sempre justificada com o salvo
conduto da “diversidade”. Essa palavra ganha, com o correr do
tempo, um poder nefasto, pois justifica, mais que a simples existência
de um determinado mau cinema, a sua profusão. Sim, o certo e o
errado, o bom e o ruim, são relativos e discutíveis, mas uma curadoria
tem de definir seus critérios e segui-los à risca. Escolher e
defender um certo tipo de cinema é problematizar a negação aos
outros, analisá-lo mais atentamente. É se colocar politicamente
num contexto que acaba pedindo uma discussão crítica mais aprofundada.
A partir do instante em que um filme como o de Cristiana Grumbach
(esse, sim, um filme de qualidade, sem aspas) freqüenta o mesmo
espaço desse terrível longa do Gal, há algo errado, bastante errado.
* * *
Só Não Tem Quem Não Quer, de Hidalgo Gomes
(São Paulo, 2010)
Tempestade, de Cesar Cabral (São Paulo, 2010)
Da
tentativa ao êxito. Os dois curtas da noite trouxeram à pauta
a técnica, esse tema que vem acompanhando os dilemas do cinema
brasileiro desde os anos 90. Um divã talvez resolvesse melhor
esse trauma. Só Não Tem Quem Não Quer
é uma produção de Campinas (SP), feita sob esforço de seu realizador.
Segue a tradição dramatúrgica da crise social, mostrando desempregado
que, em desespero, resolve assaltar uma moça e acaba se dando
mal com a polícia. É outro exemplo da força de um poderoso modelo
de dramaturgia – e estética –, que sempre se coloca acima das
próprias condições de realização. O resultado é torto, mas significativo.
Tempestade, curta em stop-motion (foto acima), é
o contrário disso: o apuro técnico é inconteste. E, como em todos
os filmes de animação, é também a sua felicidade. Um marinheiro
à deriva, o mar, a foto de uma mulher, sons e nenhum diálogo.
Numa situação mínima, resta à imagem dar a voz ao longa. E a imagem,
aqui, é adequada. Muito boa por isso, mas aberta a embaralhar
o que pensar sobre o filme, se ele é ou não bom. Pois parece ser,
apenas, o triunfo da técnica.
* * *
Leite e Ferro,
de Claudia Priscilla (São Paulo, 2010)
O intuito da realizadora do documentário de longa
da noite, aparentemente, foi também o de encontrar a melhor forma
– no caso, para abordar um assunto bem interessante, o drama das
mães presidiárias com seus bebês no CAHMP (Centro de Atendimento
Hospitalar à Mulher Grávida), quando as mesmas ficam com seus
filhos por quatro meses, numa situação menos dura que a clausura
presidiária. A forma, qual estilo utilizar etc, como se sabe,
é a escolha suprema do cineasta, e por isso, talvez, por cuidado
ou preocupação autoral artística, haja uma certa dispersão em
boa parte deste Leite e Ferro. Deixar a câmera atrás de
grades para filmar o que há do outro lado delas, remetendo sobre
a prisão, por exemplo, é um recurso que se faz um tanto formalista
demais em sua geometria física como redundante para enfatizar
a situação das mães e seus pequeninos.
Não
estamos num filme-denúncia, nem sobre o sistema. Estamos num filme
intimista. Daí a esquisitice das grades, da ênfase também em se
filmar chão e corredores sujos etc. Outro problema é que, uma
vez que o foco do filme está em mais de uma mãe, utilizar uma
“mestre de cerimônia”, como é a performática Deluana, parece uma
necessidade supérflua – e que resulta num desfoco bastante perigoso
ao filme. Idem as mulheres, que contam um tanto demais sobre suas
vidas (a imersão nas drogas, a dura vida do crime). Isso importa
às mulheres, mais do que às mães. Talvez importe também à performance
e apelo do filme: seus relatos são deliciosos, divertidos, bastante
iluminadores pelo modo leve com o qual elas encaram seus descaminhos.
Mas o que é bom isoladamente como assunto e forma, cria rachaduras
ao conjunto, àquilo que seria um filme sobre mães presidiárias
e seus filhos.
Por outro lado, Claudia Priscilla evita o drama,
o que é um drible e tanto, já que a situação de muitas daquelas
mulheres será o de continuarem presas e não conviverem com (ou
até não verem) seus filhos por longo tempo. O terço final é especialmente
feliz como cinema, quando o filme finalmente encontra a medida
certa, o foco, e, mesmo ainda entre alguns planos de grades, temos
imagens que retêm essas mulheres e seus bebezinhos. É, também,
um grande momento dos documentários: quando cineasta e objeto
encontram-se. Um suposto encantamento da diretora com o universo
(o que não seria errado, tampouco incomum) acaba garantindo, inclusive,
uma aproximação bacana, de respeito e de igual para igual, que
não expõe as mães e nem seus nenéns, tampouco os delega a um sensacionalista
papel de vítimas do mundo etc. Apesar da grade, do encantamento
com o universo marginal dessas mulheres, Leite e Ferro
parece reconhecer quem está filmando. Isso não é pouco.
Julho de 2010
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