in loco - III festival de paulínia
Dia 1: Eficiência
se prova na tela
por Paulo Santos Lima
Do destacado tapete vermelho
avançando por entre as exóticas colunas da fachada aos apresentadores
“de qualidade”, a abertura do III Festival de Cinema de Paulínia
deixou patente uma inspiração pela eficiência. Eficiência, mais
do que qualidade. No palco, os mestres de cerimônia Lázaro Ramos
e Fernanda Torres, em acentuado e preparado overacting,
falaram sobretudo de números: muitos números, muitas quantidades,
entre filmes e borderôs. Números reais, fortes, pertinentes pelo
que, de fato, Paulínia vem se comprometendo como pólo de produção
cinematográfica. Pertinentes porque o senso comum que enxerga
a realização cinematográfica no país como um esforço dramático,
sobre-humano, trágico até, entende que a não sustância material
seja o motivo de nosso fracasso. Números, antes de valores, são
quantidades e, nessa lógica tão pós-retomada dos anos 90, a
quantidade confirma a qualidade; a qualidade é a quantidade. E
os dados dizem que o Festival de Paulínia, como estandarte da
iniciativa de fomento à produção, é um êxito. Num contexto no
qual os critérios para mensurar o que e o quanto um filme é bom
ou ruim são tão esdrúxulos quanto inexistentes e aleatórios, só
resta a métrica matemática. Nisso, convenhamos, Paulínia não faz
rodeios, dando sentido a essa lógica torta dos números servirem
como transcendência à nossa parca condição material cinematográfica.
A eficiência, termo presente nos meios megacorporativos, nem precisa
ser abortada. Paulínia, como pólo cinematográfico, deve seguir
avante. Mas precisa se justificar. Seu festival, que, em boa parte,
é um portfólio do que está sendo feito por aqui, já mostra para
o que veio. Mas precisa mostrar melhor – obras melhores. Ainda
é cedo, e por isso esperemos até o final do evento para concluir
algo sobre como anda o Festival e o pólo de Paulínia.
***
O Beijo da Mulher Aranha (Kiss of Spider Woman),
de Hector Babenco (Brasil/EUA, 1985)
Hector
Babenco, o homenageado deste ano, é, na convenção, um cineasta
também “de qualidade”. Diretor reconhecido em Hollywood, além
de autor que criou problemas, por seu gênio criativo, na mesma
máquina industrial norte-americana. O Beijo da Mulher Aranha,
talvez seu filme de “mais qualidade” (mesmo que sem tanta qualidade
visual), fez as honras do início do III Festival de Paulínia.
Tudo a ver. Atores de renome internacional, conduzidos por diretor
convictamente radicado brasileiro, falando de situação fenomenal.
É tudo o que alguns diretores da atualidade, e que vêm apresentando
seus trabalhos mequetrefes, parecem querer. Babenco está bem acima
disso, bastante mais preocupado com questões mais íntimas e profundas,
que fique claro. Fez, afinal, alguns filmes que cutucaram alguns
de nossos problemas de pauta, como o abandono infantil em Pixote
- A Lei do Mais Fraco. Um cineasta do sistema, da situação.
Um cineasta oficial. Isso, contudo, não importa. Isso descalibra
nossos olhar para os filmes, para percebermos a variedade de problemas
que, volta e meia, eles possuem – sobretudo de estilo. Tira-nos,
inclusive, do foco para percebermos como o cinema deste homem
acaba, por linhas bem tortas, sendo bastante interessante. Não
são poucos os momentos de força, espalhados ao longo de vários
de seus filmes.
Assim,
a escolha de O Beijo da Mulher Aranha representa um começo
bem digno, mas não sem problemas de ordem estética, pois o filme
envelheceu um bocado. Basicamente, há uma tremenda costura que
reúne os vários tratamentos, e cuja linha salta aos olhos, quase
aos remendos. Em resumo, O Beijo da Mulher Aranha fala
do encontro entre dois modos de estar e ver o mundo numa situação
opressiva e adversa: temos o escapista Molina (William Hurt) e
o cético revolucionário Valentin (Raul Julia), em convívio forçado
na mesma cela. O primeiro, homossexual, tenta transcender o confinamento
com o escapismo da fantasia do cinema e do romantismo. O outro,
hetero e sexualmente conservador, reage ao que se dá na esfera
do material. Na conclusão, além do contato físico, ficará patente
uma inversão bastante óbvia, desde há muito, que é Molina com
senso agudo sobre o contexto e Valentin, idealista em seu projeto
político impossível, prestando-se ao papel de sonhador.
Babenco não situa espaço e tempo da sua história.
Realiza, portanto, um filme universal, aberto a leituras heterogêneas.
Faz um cinema cosmopolita (a cara do projeto de cinema “de qualidade”
brasileiro). Mas, como citado acima, seu estilo é complexo, atabalhoado,
com rebarbas e caligrafias confusas. Teria de ser uma obra com,
no máximo, dois tratamentos distintos, mas existe um hibridismo
que contamina a cena no geral. O que é interessante para o exercício
de observação do filme. Afinal, como resolver um tema realista
numa dramaturgia que pede algo teatral, no típico teatro-filmado
inglês, com dois atores digladiando-se armados de seus talentos?
Como mostrar uma cadeia sem a luz branca que sanitiza seus espaços
podres? Como evitar que a fabulação de um personagem surja reproduzida
na tela, livre de excessos que a tornam uma hemorragia visual?
Babenco
se perde nisso, o que, visto hoje, não é devido aos critérios
estéticos dos anos 80, mas sim por uma visão de mundo do cineasta.
Este diretor dialoga com a realidade concreta das coisas, mas
seu ímpeto criativo discorre em transcender esse estado de coisas,
ou, de outro forma, avistar sob outro ângulo. Assim, ainda que
tenha contado casos de extrema premência real, como Lucio Flávio
- O Passageiro da Agonia e Pixote, a Lei do Mais Fraco,
o estilo da cena é sempre o da reconstrução, nunca o da transposição.
Não é por menos que Brincando nos Campos do Senhor e Coração
Iluminado, inclusive dois filmes cujos temas não correspondem
à realidade política, são seus dois melhores e mais bem-resolvidos
trabalhos. Se o problema crônico da obra de Babenco é de tratamento,
quando este surge limpo, ou definido, seu cinema se mostra extraordinário.
O Beijo da Mulher Aranha,
após toda uma encenação que fica entre o naturalismo, a reconstituição
e transposição, entre a transparência e uma certa opacidade metafórica,
migra para uma encenação mais direta, que é de extrema beleza
dramática. Limpo da luz preparada, da “arte”, Babenco encontra
um espaço que, por mais que seu filme não queira determiná-lo,
é o da São Paulo de 1985. Molina sai da cadeia e volta para a
casa da mãe, com vista para o elevado e seus carros em trânsito,
circula pelo metrô e por entre as pessoas na praça da Sé. Alguns
ali até reconhecem o ator americano, numa bela quebra de representação
cujos cacos Babenco deixa à nossa vista. Molina correndo, tomando
balaço no peito e tombando, bem ao estilo codificado do método
norte-americano, é um maluco caminho que leva Babenco a um lugar
inédito, da imagem inesperada que se coloca acima de qualquer
idéia de controle e preparação. Toda essa sequência de Molina
andando e existindo fora do espaço “teatral” do cárcere é tudo
aquilo pelo qual O Beijo da Mulher Aranha parecia jamais
enveredar. É um desses momentos nos quais o tino do cineasta encontra
a melhor forma – a forma que mais se aproxima do encontro. Num
cinema “de qualidade”, como este que vem sendo propagandeado pelos
cineastas contemporâneos, essas lindas imagens de Molina seriam
um defeito. Nesse caso, “qualidade” deveria ser um conceito numérico.
Binário, jamais monetário, que oriente que bom é o cinema cuja
câmera sabe onde e como estar, mostrando como e o que mostrar.
A estatística, enfim, é a ferramenta dos incapazes. Que os números,
nesse III Festival de Paulínia, sirvam para confirmar, e não orientar
o cinema dos desorientados. Disso pode surgir algo que justifique
todo o fausto e eficácia de Paulínia, sua mostra e seu projeto
de cinema brasileiro.
Julho de 2010
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