edição especial curtas brasileiros
2009 Produzindo distância por
Fábio Andrade
Passos
no Silêncio, de Guto Parente (Ceará, 2009)
No
primeiro plano de Passos no Silêncio, a câmera enquadra frontalmente um
andar de um prédio, mostrando apenas duas janelas. Em uma delas, vemos uma professora
que dá aula de alemão. Na outra, um aluno. Ao fim da aula – após os alunos, que
se escondiam no extracampo criado dentro do campo pelas paredes, saírem da sala
– o rapaz da janela se levanta, e vai em direção à professora. Ele pede que ela
lhe traduza um poema – mas a ação demandada pelo enquadramento é mais importante
que a fala. É o quadro que cria uma barreira entre esses dois mundos, essas duas
janelas, esses dois campos. Se a câmera tivesse sido colocada dentro da sala,
o espaço seria livre, e a circulação, irrestrita. Mas, mesmo com uma parede entre
eles, o rapaz sai de seu mundo e, com enorme facilidade, passa para o mundo dela.
A
garota leva o poema para a casa e luta com a tradução. A câmera parece se equilibrar
parcamente em enquadramentos incômodos que não mostram o que deveriam mostrar,
e que nunca conseguem acessar quem está diante dela. Mais uma vez, ela produz
um vácuo. Não existe dramaturgia possível, e todas as cenas parecem ressaltar
sua própria ineficiência. A zoom nos aproxima da personagem só para deixar
claro o quanto ela continua distante. Em outro plano, vemos a protagonista sentada
no chão, com os cabelos molhados, cercada por folhas de papel. Em um golpe de
raiva, ela amassa as folhas ao redor enquanto grita "Merda!", e repousa
a cabeça sobre os joelhos dobrados, em uma cena que larga mão de todos os recursos
possíveis para comunicar sua dor, desespero e auto-comiseração. Uma cena que,
esvaziada em um clichê, transmite apenas sua incapacidade de transmitir qualquer
coisa. E aí temos os passos do título, cortados um a um,
sempre pisando um chão diferente. Sem som e sem raccord, parecem flutuar
em outra esfera. Acessar o outro é sair de casa, sair do quadro, sair do entorno
cognoscível. É, sobretudo, caminhar entre espaços desconectados. Vemos a garota
andando na praia, em um contra-plongée silencioso e absolutamente estático.
O plano é belo, mas também consciente de sua ineficácia. A câmera sai do chão
e se põe a correr, seguindo a personagem até perdê-la de vista e restarem apenas
os seus rastros, suas pegadas como evidências de uma passagem. Para compreender
o esforço de se passar de uma janela a outra, quebrando a lógica imposta pela
decupagem, a câmera precisa apreender a vertigem absoluta.
Pouco
importa a tradução do poema; o que importa é que, ao fim do filme, a professora
vai até à carteira do aluno, saindo de sua janela e adentrando o mundo dele. A
caminhada, como a dele, parece fácil, mas Passos no Silêncio nos dá consciência
do peso daquela passagem. Retoma-se, aqui, a tradicional narrativa do herói, em
que a função da dramaturgia é justamente colocar obstáculos entre a origem e o
destino final. A câmera se assume produtora de distância justamente para ressaltar
a beleza da determinação dos personagens em quebrá-la. Janeiro
de 2010
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