nas locadoras Partner
(idem), de Bernardo Bertolucci (França, 1968) por
Cléber Eduardo Apoio: Wolf Vídeo (*)
Fragmentação e desorientação do sujeito Poderíamos
pensar Partner por 1968, ou pelo cinema em 68, mas não é a questão central
aqui. Poderíamos pensar pelo momento de Bernardo Bertolucci, então em seu terceiro
longa metragem, depois de La Commare Seca e Antes da Revolução,
antes de A Estratégia da Aranha, naquela fase inicial aberta a experimentações
com a estrutura e com as relações entre psicologia, política, tempo e espaço.
Um cinema moderno e libertário na linguagem, mas ainda burguês em sua aproximação
com os personagens. No entanto, não é a questão aqui. Não nos interessa nesse
texto essa tentativa de identificar o Bertolucci de Partner em relação
ao Bertolucci das décadas seguintes, inclusive o de Os Sonhadores, filme
conservador do século 21 ambientado no ano mítico de Partner. Subtraindo
de nossa perspectiva crítica a contextualização histórica, de modo a não tomarmos
o filme apenas como sintoma de seu momento e confirmação de nosso conhecimento
sobre seu contexto; subtraindo também a chave do autor como universo delimitado
de abordagem, de modo a evitarmos esforços para chegar a confirmação retroativa
de uma autoralidade à Bertolucci, interessa-nos nessa aproximação pensar
os procedimentos com o material e os efeitos produzidos pelas opções Faixa
azul e vermelha, trilha tensa. Travelling recua de rua para dentro de café,
situando no enquadramento um rapaz sentado, o ator francês Pierre Clementi, que
olha alguém saindo de um prédio. Movimento de fora para dentro, do geral para
a imagem específica, uma arma planos adiante. Esse mesmo rapaz faz gestos de Caligari,
um ruído visual, um primeiro entre tantos outros estranhamentos a seguir. Logo
o veremos com outro rapaz, parecido, idêntico, agressivo, e o filme será centrado
nesse atrito, na fissura de uma percepção e de um discurso, na duplicação esquizofrênica
de imagem e palavras, com poder maior de um dos lados sobre outro. Um filme de
duplos, do sujeito social e do sujeito teatral, a regra e o desejo, o artista
mediado pela cultura e o artista inventor-reativo-reagente. Uma
percepção em crise, inviabilidade de organização. Talvez por isso se procure a
produção de um espaço mítico na ambientação, mesmo empregando uma aproximação
documental com as ruas e Roma, com as intervenções teatrais tão sintomáticas e
produtoras dos anos 60/70, que ganham nesse espaço mítico uma outra temporalidade
histórica, a da representação do artista dividido entre expressão e tarefa. Como
se organiza um filme pautado pela desorganização do mundo para se afirmar como
mundo ficcional no qual a organização artística transfere-se para a intervenção
com o espaço público? A arte desloca-se, nas performances teatrais mostradas em
Partner, de uma noção de controle para a de interferência, uma ação dotada
de certa autonomia de desenvolvimento, fruto de uma relação entre o artista e
o mundo. Imprevisto, dispositivo, aleatoriedade, essas
palavras tão anos 2000, estão no cerne e nos efeitos de Partner, filme
tão estilizado quanto amalgamado à sua dinâmica de realização. Estilizado, sobretudo,
porém. Vemos cenas de performances cênicas nas quais os travellings laterais
recorrentes parecem teatralizar os espaços em vez de torná-los cinemáticos, certamente
porque o movimento visa salientar a cenografia artificial e mostrar como aquelas
imagens são produtos de um autor e de uma cultura. Livros
e mais livros no cenário. Território da guerra cultural, de formação de subjetividades.
Partner é um filme que nasce não de Dostoievsky, “O Duplo”, mas de uma
erudição também alimentada pelo cinema e pelo teatro. Nesse, Artaud, com suas
quebras, com suas aberturas. Naquele. Godard, sem dúvida, não só o da segunda
parte dos anos 60, pós-O Desprezo e antes do grupo Dziga Vertov, mas também
o do grupo Dziga Vertov, sobretudo nos momentos de efeitos brechtianos
para cinema. No entanto, além da reflexividade em alguma medida e em alguns momentos,
há a cultura da incorporação, necessária para transformar imagem em sentido sem
explicação. Quando Pierre Clementi evidencia uma mudança
de presença física, logo nas primeiras imagens, arqueando as costas como um felino,
como vampiro, como personagem expressionista, a imagem nos mostra, antes de entrar
na questão da duplicação e da fragmentação, as dobras de uma imagem, justamente
pelo que ela trás de acúmulo cultural, justamente porque ela nos indica a encenação
e seu código, nos colocando diante de uma imagem em si mesma sujeita a desdobramentos.
A dualidade é uma questão para vampiros e para Caligari. Na dualidade, há fissura.
O filme nos nega um guia por sua lógica e por seu percurso, assumindo um caráter
hoje consideravelmente performático – uma instalação cinematográfica, à beira
da dissolução, mas sem chegar a experimentar de fato na imagem e na estrutura,
limitando-se a desestabilizar os nortes orientadores. O
protagonista é um personagem, aparentemente, que recusa construção. Nos primeiros
30 minutos, suas presenças não partem de uma matriz, mas de uma maleabilidade,
levando esse corpo a ser pura modificação, levando esse espírito e essa personalidade
a se comportarem como se estivessem constantemente possuídos ou em surtos esquizofrênicos.
Alto grau de teatralidade nos duelos entre as personalidades, com alto investimento
na luz como estilização dramática dos espaços, com uma narrativa esforçada em
ser expressiva em cada passo, às vezes muito preocupada em explicitar o autor
e a arte, em fazer quase uma militância pela intervenção do cineasta na vida.
Provocação e quebra de lógica, máscara e desmascaramento. É o cine-teatro para
os anos 2000.
Agosto de 2008
(*)
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