pariscópio - especial Berlim/Paris
Paris e Berlim entre as artes plásticas e o cinema
por Cezar Migliorin

Além da possibilidade de vermos obras clássicas de dezenas de artistas que nos últimos 30 anos trabalharam com cinema e vídeo, o que chamava a atenção na inevitável comparação entre as mostras que recentemente foram exibidas em Berlim (Beyond Cinema: The art of projection, que ocupou uma boa parte do Museu Hamburger Bahnhof) e Paris (Le Mouvement des images, no Centro Georges Pompidou - Beaubourg) é o papel da curadoria na montagem de grandes exposições que lidam com artistas muito distintos, com épocas diferentes e, sobretudo, com estéticas singulares - que podem ter muito a ganhar ou a perder no contato como outras obras.

Qual o desafio central de uma exposição que coloca tantas obras juntas? Com o risco do reducionismo, diria que o desafio é manter a singularidade das obras, para que elas possam ser experimentadas no seu isolamento, e, ao mesmo tempo, criar ressonâncias, linhas de continuidade entre as obras, permitindo ao espectador comparações, interesses históricos e temáticos que complexifiquem e ampliem os trabalhos. Perceba o desafio: se por um lado o trabalho curatorial conecta as obras, por outro ele afasta e isola. À curadoria caberia o papel de criar um comum – variável -, e simultaneamente, inventar distâncias e ocultar as semelhanças ilusórias. Por um lado encontrar e explicitar conexões estéticas entre as obras, por outro respeitar processos singulares.

A exposição do Beaubourg está distante deste princípio, não por incapacidade da curadoria em executá-lo, mas simplesmente por descrença neste papel. Ou seja, para Philippe-Alain Michaud as obras são instrumentalizáveis para o sentido da exposição, ou seja: o cinema tornou-se um modo de pensar e operar as imagens e arte do século XX. Esta opção instrumentalizadora fica clara já na escolha dos conceitos tirados do cinema e que norteiam a organização da exposição: projeção, montagem, narrativa, défilement. Cada obra está na exposição dentro de um dos quatro conceitos que a moldam. Primeiramente me parecem conceitos excessivamente técnicos, longe dos efeitos possíveis das obras ou das questões e problemas que enfrentaram os artistas ali presentes. A concentração na materialidade dos trabalhos acaba por reduzi-los, ao indicar um vetor de leitura excessivamente forte. O pressuposto de que o cinema reorienta a história da arte do século XX é bom, e retoma Walter Benjamin quando este se perguntava, nos anos 30, se o cinema trazia uma mudança radical para a definição mesma de arte. Mas, a escolha dos quatro recortes cinematográficos para a organização das obras nos pressupõe uma resposta a pergunta, anterior mesma à experiência da exposição.

Por outro lado, como o recorte faz esse papel hiper-presente, ele torna possível que uma quantidade e diversidade de obras apareçam na exposição: Picasso, Matisse, Brancusi, Donald Judd, Pollock, Gerhard Richter, Jasper Johns, Chuck Close, Léger, Delaunay, etc (fora, obviamente, os artistas que efetivamente trabalharam entre o cinema e as artes plásticas). Curioso efeito da montagem proposta no Beaubourg: ao ficar específico demais nos princípios cinematográficos, a exposição se abre para uma diversidade de obras sem limite. Talvez esse efeito fale mais sobre o cinema e a sua possibilidade de tudo engolir - no sentido figurado também - do que da arte do século XX.

A montagem de Philippe-Alain Michaud opera, como uma forma de defender suas teses, postura no mínimo pouco generosa com os artistas que são ali apresentados. Cada obra passa a ter um “papel” no interior da exposição - ao mesmo tempo em que lhes é retirado todo seu potencial de criar linhas de continuidade com o que não está na exposição, com o que não é dominado pelo curador e pela instituição. Operar semelhanças entre obras é também respeitar seus processos e dispositivos, nem sempre explícitos. Excesso, instrumentalização excessiva das obras e rigidez dos conceitos que tendem para tecnicismo dificultaram enormemente a experimentação das obras na exposição do Beaubourg.

Já a exposição alemã fazia um caminho absolutamente oposto, e apesar de lidar com questões semelhantes - principalmente a relação do cinema com as artes visuais - ela não tenta dar respostas através das obras. Os trabalhos expostos parecem modos de interrogar este problema e, até por isso, são tratados de maneira em que a comunicação entre eles é feita de maneira rigorosa e delicada - duas coisas que não podem se opor. Em Beyond Cinema, estamos longe de uma tentativa de fazer síntese, e a abertura dos campos temáticos que organizam a exposição explicitam isto: Fantasmagoria, Persona, Repertory Cinema, Body Double, O limiar, O ótico. Mas, mais do que tecer tênues linhas entre as obras, os campos tematicos são responsáveis por micro-indicações de caminhos a percorrer nas obras e estão longe de se estabelecerem como chave de leitura que organiza a relação entre elas.

Se o título da mostra não é muito feliz, pois sugere um “para além” do cinema como evolução, a montagem da exposição e o respeito às obras eram exemplares. A exposição fez um recorte temporal nesta “arte da projeção” selecionando trabalhos de 1963 até 2005, e permitindo ao público conhecer trabalhos clássicos de artistas como Nam June Paik, Bruce Nauman, Douglas Gordon, Andy Warhol, Pierre Huyghe e Peter Campus. Sobretudo, porém, ela permitiu experimentar uma grande diversidade de modos de se reconfigurar o dispositivo cinema: na duração (o vídeo de Douglas Gordon, 24 hours Psycho (acima), em que o filme Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, é projetado em uma câmera lenta que o faz durar 24 horas); ou no lugar do espectador (os trabalhos Viewer de Gary Hill, em que uma longa parede de “espectadores” nos olha enquanto os observamos; e Prototype for interface (1972), de Peter Campus, no qual a imagem filmada do espectador se confunde e se funde com seu reflexo - como já citado no texto de André Brasil).

A tela única do cinema, presente em alguns trabalhos, está, entretanto, ausente na maioria das obras. Múltiplas telas compõem trabalhos narrativos como os de John Massey (As the Hammer strikes, 1982) e Outer and Inner Space (1965), de Andy Warhol. Em instalações como Line describing a cone (1973), de Anthony McCall (ao lado) e One Candle (1988) de Nam June Paik, é a projeção que faz obra: enquanto no trabalho de McCall, a projeção de uma luz branca em uma sala levemente esfumaçada produz uma verdadeira escultura em forma de cone; no trabalho de Paik, é uma distorção da regulagem dos projetores que produz as imagens multicoloridas de uma vela filmada ao vivo. O lugar do realizador é também tematizado e se transforma no princípio mesmo da obra em Une seconde d’eternité (1970), de Marcel Broodthaers, em que suas iniciais MB são escritas na película em um filme de 1 segundo; e no belíssimo Body Press (1970/1972), o clássico trabalho de Dan Grahan em que um casal se filma nú, com duas câmeras, no interior de uma sala redonda e espelhada, fazendo movimentos circulatórios e trocando as câmeras entre eles - trabalho exibido em duas telas.

O respeito com as obras presentes em Berlim também impressionava, e um exemplo disso é que cada obra era exibida em seu formato original. Diferentemente da enorme exposição que aconteceu no, em que todos os trabalhos feitos em super 8, 16mm ou vídeo analógico foram digitalizados e exibidos com projeção digital. Em Berlim, no Hamburger Bahnhof Museum, cada trabalho era exibido em seu suporte original e, mais do que isso, o projetor de vídeo utilizado para cada trabalho era apropriado à obra. Algo que pode parecer um preciosismo, mas que faz grande diferença em obras como as citadas Viewer e One candle, em que os antigos projetores de três lampadas – vermelha, verde, azul – são parte constituinte das imagens. O argumento de Philippe-Alain Michaud, curador da exposição do Beaubourg para utilizar apenas o suporte digital não é, no entanto, negligenciável: a de que a única forma de ter dinheiro para preservar os trabalhos em seus suportes originais é exibi-los em digital - assim, os museus poderão pagar suas exibições e os trabalhos poderão atingir as centenas de milhares de pessoas, como foi o caso dos trabalhos presentes na exposição Le Mouvement des Images. É com esse dinheiro que se cuida dos trabalhos de preservação mais difícil.

Comparar as duas exposições talvez não nos leve muito longe, uma vez que são propostas diversas, que abrangem períodos, estruturas, mídias, orçamentos e público diferentes. A exposição do Beaubourg é montada para ser vista por mais de um milhão de pessoas - fora isso, o trabalho de Michaud envolvia também o desejo do Beaubourg em expor seu acervo gigantesco. Todas as obras que compõe a exposição Mouvement des Images pertencem ao acervo do Centre George Pompidou. Talvez a exposição do Beaubourg estabeleça linhas de continuidade mais férteis com os espetáculos de massa, como os filmes de Hollywood, por exemplo.

Apenas um último comentário. É uma pena que grandes exposições como estas não utilizem o catálogo como um verdadeiro lugar de reflexão sobre as obras e sobre a montagem mesmo. Sobretudo a exposição do Beaubourg, em que nem todas as obras expostas constam no catálogo e há apenas dois textos (sendo um curto, do curador) para tratar de tanto material.

editoria@revistacinetica.com.br


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