Paralelo 10, de Silvio Da-Rin (Brasil, 2012)
por Rafael Castanheira Parrode

Viagem ao princípio do homem

Sílvio Da-Rin parte de procedimento semelhante ao utilizado em seu filme anterior, Hércules 56, para construir seu Paralelo 10. Pois refazer as viagens do sertanista José Carlos Meirelles (acompanhado do antropólogo Terri Aquino) é reconstruir todo um percurso histórico, adicionando novos significados, novos horizontes, desmistificando alguns mitos e reconfigurando o passado através do presente. Ao adotar o ponto de vista do sertanista como mediador dos conflitos, como elo entre a civilização e o selvagem, Da-Rin acaba reconstruindo, refazendo um percurso de desbravamento, de retorno às entranhas de uma região imersa em fluxos de tempo, perdida em algum lugar entre o passado e o futuro. Nesse sentido, Paralelo 10 é um filme-diagnóstico que disseca, a partir de uma cartografia humana, toda uma complexa dinâmica de relações entre sertanistas e índios - e principalmente, da relação que se estabelece entre as várias etnias e tribos indígenas que se concentram na região do Paralelo 10 sul, linha de fronteira entre Brasil e Peru.

Isso revela uma polarização, um antagonismo rechaçado entre os índios “pacificados” e os isolados, refletindo toda uma perspectiva cultural, antropológica e social, contemplada por uma concepção de modernidade que não admite mais o “selvagem” como parte de sua engrenagem. Quanto mais o filme se imanta das memórias e dos causos contados pelos personagens, quanto mais se embrenha na densidade soturna da floresta e do rio, quanto mais revela uma miscelânea de etnias, de feições de povos e culturas, mais somos confrontados com uma realidade que nada tem de heróica ou exotizante, mais somos confrontados com o lado obscuro e selvagem que existe escondido, adormecido em cada um de nós. Essa atualização das expedições bandeirantes reinterpreta a figura do sertanista, nos colocando diante de um paradoxo que atravessa toda a história, passando pelos primeiros contatos banhados a sangue, até à humanização desses contatos através da figura do Marechal Rondon e seu lema “morrer se preciso for, matar nunca!”. Meirelles é essa figura que transita entre a selvageria maculada do homem civilizado, e o humanismo afetivo e ideológico moderno. É, ao mesmo tempo, o herói e o “Diabo Velho”, uma dicotomia estabelecida na sua relação com os índios que o observam hipnotizados, amedrontados, ameaçados, mas confiantes na postura severa e paternalista que Meirelles trava com eles.

Faz todo o sentido então, que Paralelo 10 se assuma como um river-movie, um travelogue que se ancora na perspectiva da viagem, do retorno aos primórdios da humanidade. Existe uma apropriação de elementos e simbolismos marcantes no road-movie, gênero que surge a partir do western, da marcha para o Oeste, da idéia de nomadismo. Da-Rin inscreve seu filme no âmbito da representação da modernidade, explicitando suas crises e contradições e colocando em xeque valores e arquétipos, desenvolvendo uma dialética entre o “eu” e o “outro” que revela uma crise de identidade histórica e aguda no Brasil. Dessa forma, o filme não é outra coisa senão uma expedição em busca do “lobo do homem”, em busca do selvagem adormecido, daquele que a modernidade buscou extirpar de seu convívio social. O progresso não admite o selvagem. Resta apenas isolá-lo, ignorar sua existência num mundo em que o progresso tecnológico é pretexto para que nos tornemos menos animais, e mais máquinas.

Agosto de 2012

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