Paraísos Artificiais,
de Marcos Prado (Brasil, 2012)
por Andrea Ormond
Fixando o vazio
Não é segredo que o primeiro Tropa de Elite
(2007) partiu de um status quo alucinado – a malévola
e finíssima classe média – para dele extrair um pacote de teses.
Elas pululam: de onde viemos, para onde o bonde está indo, qual
o final de tudo. Contrariando o lacrimoso Ônibus 174 (2002),
José Padilha mexeu no geist sem dó nem piedade: injetou
toneladas de incorreção política. Bateu na hipocrisia mequetrefe
dos campi, dos gestos que observava desde garoto. E ao
bulir na santidade de muitos hereges, deixou claro que a perversão
pode acontecer tanto no universo épico do tráfico de drogas quanto
nas miudezas, nas vigarices cariocas cotidianas. Capitão Nascimento
grita, se descabela como personagem de Charlton Heston, mas não
soa divinal. É justamente ele quem reconhece que a alienação e
a violência do meio o fazem engolir o guisado de cara feia, lambendo
os dedos e chupando lentamente os ossinhos.
Paraísos Artificiais, de Marcos Prado, não pretende uma explicação tão ampla quanto
as do Capitão Nascimento. Não vai na laje tomar cerveja com os
amizades, não elabora várias frentes de batalha e, sobretudo,
não utiliza referenciais pitorescos – do tipo dos que aliviaram
a truculência e fizeram de Tropa de Elite um produto na
linha do pop e do consumível: os refrões dos personagens e da
música-tema ainda hoje inebriam os amantes da franquia. Ainda
assim, apesar das diferenças irreconciliáveis, Paraísos Artificiais
funciona como uma nota de pé de página ao projeto destrinchado
por Padilha, seu colega e produtor deste novo filme
(assim como Prado era produtor dos dois Tropa).
Ao invés de acompanhar o rito de passagem da juventude, entre
a faculdade e o morro – para dali mostrar o efeito dominó rolando
solto –, Paraísos se fixa em um instante: o da droga que
socializa. O vazio, a ausência de motivos em um prazer que roda
e não chega a um patamar duradouro. Sem ideologias, vagando por
aí.
Nando
deixa a prisão e estende-se na cama quentinha feita pela mãe em
casa. Procura o irmão, quer impedir que ele cometa os mesmos erros
que o levaram ao claustro infernal. Memórias do cárcere nem pensar.
O libelo de Paraísos Artificiais passa longe do realismo
de Graciliano Ramos ou da denúncia de um modelo de Estado. As
memórias são as anteriores à prisão. O que se quer são as experiências
individuais, misturadas e compondo uma tentativa de liberdade
para cada personagem. Para Nando, a libertação era inicialmente
da família, após o drama de perder o pai (intepretado pelo próprio
Marcos Prado, em rápida ponta). Para Érika, sua esbelta e rosácea
aventura extra-mar, o fato de conhecer Lara e depois Nando encerra
um case pessoal. DJ, o arquétipo da arte em tempos de guerra,
ela quer um esteio, um lugar, um modo de vencer outros problemas
do passado. Érika poderia ruminar entre os dentes que o amor a
faz melhor, que a loucura de viver a mil por hora é coisa que
não compensa e que já bateu cabelo demais. A questão é tangenciada,
fica bem perto de ser dita com todas as letras, mas o diretor
evita a imensa cafonice.
O filme retrata a postura ambivalente e alienada dessa
gente eucarística, pegadora em Amsterdã ou na costa do Nordeste.
Prado consegue escapar dos falsos conselhos, apesar de flertar
em determinados momentos com um rol de condutas que lembram o
bom-mocismo. Lipe, o revoltado irmão, dificilmente verbalizaria
um veredito da sua consciência. Sabe-se que a trégua entre irmãos
não é algo comum de acontecer. Pior ainda se a atmosfera depressiva
– família destruída, mãe chorosa, pai morto – joga contra as esperanças
do brabo adolescente, encantado com a perspectiva de ser pária
e reeditar o querido parente colateral.
Na
folia de todas as cores que era São Francisco durante o “Verão
do Amor” de 1967, Érika e Nando poderiam embarcar no equivalente
das raves: o furgão de Ken Kesey e os Merry Pranksters.
Batismo de fogo entre os beatniks da linha antiga e os
hippies adocicados, errantes, que erigiram Jerry Garcia
um semideus. O debate então englobava os testes de LSD com propósitos
medicinais e a descoberta de uma porta química para outra maior:
a vida em uma comunidade que se julgava ungida, abençoada eternamente
no mel do drop out. Os vestígios arqueológicos dessa remota
era dão conta de que sair de casa era uma forma de combater o
triângulo devocional de pai-mãe-filho, colocar o sexo como um
norte, algo que Nando, Érika e Lara parecem tentar.
Durante
a façanha do enrosco lésbico, aquele vagar homoerótico em toda
plenitude, é interessante perceber que o corpo de Érika recebe
excessivamente a qualidade de protagonista: para a câmera, ele
é o ponto de partida e de chegada. Cabe à outra garota curtir
uma coadjuvância que nos leva a pensar se o filme de fato quis
mostrar a comunhão das duas – o que seria até certo ponto “ousado”
– ou preferiu a vertente soft da moça “descobrindo o prazer”.
Nesta quase assepsia, o outro lado do trisal (Nando e Érika) se
basta, sem maiores planos de vôo. Não têm a plataforma eleitoral
de colonizar o planeta, de repovoá-lo com as boas novas do ácido
– ou do GHB, ecstasy, mescalina. Tudo se acaba em uma quarta-feira
de cinzas qualquer, mesmo fora do carnaval, porque não abrem mão
da estrutura que os suga de volta. Afinal, quando menos se espera,
surge um agente da DJ com o celular tremulando e um cartão de
visitas. A temporada do exótico acaba rapidamente, sejamos práticos
e profissionais.
Hábil em conduzir a leitura dinâmica de um mundo
maior, que às vezes cede para o “hear the grass grow” visual –
as imagens imperando diante do discurso – Paraísos Artificiais
usa uma pitada de reportagem. Sem querer, promove um encontro
das águas entre o lado confessional da trama e o caráter de “alerta”
que tentarão dar ao filme. Para muitos, é fácil idealizar um ex-presidiário
que não quer ser líder de nada e que apenas está disposto a falar,
com a companhia de criaturas luxuriosas por perto. Espera-se que
o rapaz não seja alçado à condição de pastor redimido, exemplo
das cartilhas motivacionais. Enquanto os polaróides ficarem na
gritaria sobre a agitação hormonal das meninas e do menino, algum
caminho terá sido andado. Caso o vejam como roteiro pedagógico
para se atingir as virtudes, os acertos deste estudo sobre a galera
alienada diminuirão irremediavelmente, conduzindo-o à obscuridade.
Maio de 2012
editoria@revistacinetica.com.br |