in loco - cobertura dos festivais
Parada em Pleno Curso (Halt Auf Freier Strecke),
de Andreas Dressen (Alemanha/França, 2011)
por Fábio Andrade
A
imagem como ontologia
Parada em Pleno Curso começa junto com a má
notícia que o médico dá a Frank (Milan Peschel)
e Simone (Steffi Kühnert): um tumor maligno toma parte vital
de seu cérebro, impedindo qualquer tipo de remoção
ou tratamento real. O consultório é claríssimo,
hiper iluminado, a ponto de se ver os poros dos rostos abalados
do casal. Frank tem apenas mais alguns meses de vida; não
estará mais vivo para ver o aniversário de dez anos
do filho. O médico mostra o tumor na chapa da tomografia
e faz comentários sobre a área difusa ao redor dele.
Tudo parte de uma palavra abstrata que, de tão inevitável,
levará Frank à morte. O que é um tumor?
Em ABC da Literatura, Ezra Pound expunha com enorme precisão
a tendência das línguas ocidentais a distanciarem
as palavras dos objetos. Enquanto os ideogramas das línguas
orientais são representação gráficas
da imagem dos objetos que eles correspondem (e os conceitos abstratos
são representados por representações de objetos
concretos que se associam no mesmo conceito), em geral não
temos correlação visível entre a grafia de
uma palavra e sua aparência no mundo. As línguas
ocidentais tendem ao abstrato e é justamente essa tendência
que permite ao “tumor” passar incólume, trabalhando
em sua função mortal sem que a palavra traga o peso
de sua aparência.
O
cinema, ao contrário da linguagem, é uma arte ideogramática.
Ele lida justamente com as aparências do mundo e seus signos
são impressões diretas dos próprios entes.
Mas o tumor, especificamente, continua subterrâneo, escondido
nas profundezas da cabeça de Frank. O cinema é uma
arte da superfície. A partir do prólogo, acompanharemos
a ação do inevitável, do começo ao
fim, e a questão de Parada em Pleno Curso passa
ser outra, já anunciada com a tomografia na primeira sequência
do filme: como representar o invisível?
De fato, há uma história a seguir, contada de forma
bastante comovente, sóbria e equilibrada por Andreas Dressen.
Mas isso só se dá por o filme ser, de certa maneira,
um amplo inventário sobre representações
da interioridade das personagens, que ganha centralização
incontornável (justamente por ser fatal) nesse tumor, essa
imagem que expande dentro da cabeça, deixando rastros sem
que possa ser vista. Assim como a iluminação ostensivamente
direta do consultório manifesta a clareza e direção
da fala do médico – “Conte aos seus filhos
tudo que eles desejarem saber”, diz a Simone – Parada
em Pleno Curso é um exercício que estica cada
vez mais o elástico da representação, tentando
encontrar novas e novas imagens para aquele mesmo ente. A clareza
do consultório é substituída pelas vistas
nubladas pela chuva que acumula no parabrisa do carro e pelo puntilhismo
dos pixels nas imagens que Frank cria com seu iPhone. A vida após
a notícia fatal é um pouco como uma ida frustrada
a uma praia falsa, em que um punhado de areia contorna uma piscina
sem ondas. A morte caminha tão lenta quanto uma tartaruga
mas, quando nos damos conta, ela já atravessou a casa inteira.
E sua mulher viverá o título, parando o trem que
guia sob a neve da noite diante da obrigação de
mudar de curso.
Parada em Pleno Curso é todo povoado por esses
esforços de representação, capazes de transformar
um tumor em um entrevistado de um talk show, pois a doença
ocupa todos os espaços, se manifesta nos bilhetes que os
filhos deixam pela casa, pois no cinema o texto é também
imagem (“Isto não é o banheiro” colado
na porta do quarto da filha mais velha, após o pai ter
lhe deixado uma poça de xixi no chão), e na neve
que cai lá fora, cada vez mais pesada. Frank canta, via
“Love and Mercy”, de Brian Wilson: “I was lyin’
in my room and the news came on the T.V.. A lot of people out
there hurting and it really scares me”. A música
começa diegética e, em seguida se espalha pelas
outras imagens, reverberando sobre os filhos que brincam no parque
de diversões, vivendo aquilo que Frank já não
pode mais viver. Em um mundo tão povoado por imagens –
onde até as funerárias trazem esqueletos estampados
nas paredes – resta a possibilidade de transformar os fatos
em cena até mesmo na hora da morte (existe alguma hora
na vida que não seja hora de morte?), e manifestar o último
desejo que toquem Dead Man, do Neil Young, quando seu
corpo é cremado. “O álbum inteiro”.
Em
Parada em Pleno Curso, nem toda representação
é justa. Umas são mais eloquentes do que outras,
mas este é um revés inseparável da própria
intenção. Andreas Dresen se coloca questão
das mais antigas no cinema e se entrega de maneira admirável
ao desafio, sabendo que há uma justeza ímpar em
embaralhar a diegese com o mundo fora dela, em reaproximar imagem
e objeto, se esforçando por contornar o afastamento imposto
pela linguagem. E Frank deixa para trás seu iPhone e junto
dele todos vídeos que fez, as piadas que conta sobre a
própria condição, o testemunho daquele outro
homem – o homem-tumor que agora deita em seu lugar –
e tudo mais que seu filho assumiu carregar quando manifestou o
desejo de herdar o telefone do pai.
Setembro de 2012
editoria@revistacinetica.com.br
|