in loco - cobertura dos festivais

Papel Não Embrulha Brasas
(Le papier ne peut envelopper la braise)
,
de Rithy Pahn (França/Camboja, 2006)
por Eduardo Valente

Sem medo de "documentar"

Curioso paralelo pode ser traçado entre este Papel não Embrulha Brasas e o brasileiro Santiago. Em Rithy Pahn nenhuma questão de culpa de classe, nenhum problema sobre a dinâmica realizador-objeto: filmar uma realidade é, antes de tudo, questão de como colocá-la em cena. Para contar a história de um grupo de prostitutas cambojanas retiradas de seu ambiente natal camponês para a exploração urbana, Pahn não pensa duas vezes sobre "problemas em encenar”, pelo contrário: boa parte da beleza de seu filme vem da óbvia “intervenção” sobre a cena, criando jogos de continuidade de olhar incrivelmente poéticos na montagem de “conversas” entre as prostitutas, numa construção de cena onde claramente se lida com mais de um take, com reposicionamento de câmera, com repetição e encenação. Pahn parece nos dizer que nenhum procedimento é “errado” em si, mas sim os motivos pelos quais eles possam ser usados.

Papel não Embrulha Brasas é um filme que fascina acima de tudo por uma frontalidade construída de maneira claramente teatral – mas cujo distanciamento de um “naturalismo” não nos afasta nunca da realidade representada pelas próprias “atrizes” de suas vidas. Pahn se aproxima bastante, em registro, de alguns filmes de Jean Rouch – por mais que seu tom e seu tema não passem nem perto do cineasta francês. Há uma humildade na postura de Pahn frente ao horror cambojano (que nunca é ahistórico no seu cinema, eternamente referente ao Khmer Vermelho), a humildade de saber que seu filme é mais importante e melhor do que ele mesmo. Ele quer atingir de alguma forma aquelas pessoas em frente à sua câmera, e sabe que a melhor forma de fazê-lo é torná-las parte do jogo da realização de um filme sobre elas mesmas – sem precisar, com isso, tematizar constantemente este seu gesto.

No meio da simplicidade aparente de sua realização, Pahn tenta avançar sempre sobre o que não é simples “retrato de classe” daquelas prostitutas, o que as torna indivíduos. Nesse sentido, são especialmente tocantes as cenas onde elas aparecem cantando (momentos de “abstração” que só fazem reforçar a dureza do cotidiano), colando fotos de revista na parede do cortiço ou “brincando” de reencenar sua trajetória como num tabuleiro de Jogo da Vida. Da mesma forma, não há espaço para simplismos, e o “cafetão” é incorporado como mais um personagem da narrativa, passível como qualquer uma delas de possuir uma subjetividade – sem com isso ter “perdoado” nenhum dos seus erros ou impropriedades. Papel não Embrulha Brasas é mais um filme que nos chega, muito pelas beiradas, deste que é um dos mais importantes (e discretos) cineastas do mundo, hoje. Com Rithy Pahn descobrimos sempre o fascínio pelo mundo e pela vida, que é tão mais acachapante pelo ambiente francamente horrorizante onde seu cinema se insere.


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