Pan-Cinema Permanente, de Carlos Nader (Brasil, 2008)
por Cezar Migliorin

Leve as crianças

O que fazer com essa cena tão apaixonante e tão inventiva e, ao mesmo tempo, tão longe da realidade? Em algum lugar a fantasia se acalma, se junta à realidade. Filmar Waly Salomão dormindo talvez fosse uma alternativa: interromper a performance, interromper a atuação incessante. Para o Waly, a câmera aparece como um rasgo na vida cotidiana. Se a câmera está ligada, não interessa mais o Carlos Nader filmando ou o Waly que está na frente dela. Interessa a poesia e as formas de ocupar o espaço, de emitir sons e palavras, de cantar e inventar.

O filme de Nader trata de aproximar essas duas instâncias, até a indiscernibilidade. Não há a cena com o Waly e o Waly real. Se assim fosse, o poeta precisaria se isolar, se separar do mundo e daqueles com quem constrói a imaginação – que já não é só sua. Imaginar é pensar com o outro. Estar com esses outros, na Síria, na Bahia ou na Alemanha era a chave para fazer do encontro o início do estranhamento do mundo. Com estranhamento Waly percorre a força inventiva das coisas que encontra em cada canto. Realidade e invenção se tornam presos um ao outro, ou melhor, livres um com o outro. Para conhecer Waly, Nader nos introduz na aventura do poeta, na experiência que ele faz consigo e com que está em volta. Em cada encontro a simplicidade e a vitalidade.

Há uma sedutora precariedade nas imagens, muitas vezes por opção de finalização. O Waly que Nader documenta é intimo, no quarto de hotel ou ao lado do carro atolado. As imagens que o filme coloca em um fluxo de poesias, performances e breves reflexões afetivas, parecem sempre momentos fortuitos e improvisados, saídos de um tropeço, de um objeto que escorrega da mão. Ao mesmo tempo, a ação de Waly é para toda a humanidade. Falar para o mundo todo com o fulano que está na esquina. Este gesto torna o personagem por vezes trágico, frágil, patético (pathos dionisíaco). A tarefa do poeta é imensa, eis a dor e a liberdade. O gesto de Waly, recuperado e construído com o filme, é infantil e lúdico. Crianças correm entre os cristais de uma loja de luxo. Mesmo os espaços mais ordenados e disciplinados se tornam espaços de brincadeira com a linguagem e com o outro. O filme de Nader entra nesse universo do poeta sem tentar domesticá-lo, atento aos afetos e às palavras que parecem flutuar e encontrar pouso provisório nas afinidades e saudades presentes no filme. Leve as crianças. Uma pedagogia de vida.

Novembro de 2008

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