in loco - cobertura dos festivais

Palermo Shooting, de Wim Wenders (Alemanha, 2008)
por Paulo Santos Lima

Filmando a morte da (sua) imagem

Em Palermo Shooting, temos Finn, um fotógrafo que só acredita na superfície das coisas, que despreza uma verdade do objeto, uma verdade que anteceda o ato fotográfico. Finn vive a mil por hora, entre ligações de celular, convite ali e chamada lá, dispensando veementemente seus casos amorosos, desfigurado de intimidade e existência a ponto de morar em seu próprio estúdio como um fantasma, registrando tudo à sua volta (a 360º, literalmente), e depois manipulando o material para fazer seus landscapes badalados no mundo inteiro. Finn fala muito, extra e intradiegeticamente, esclarecendo suas questões, procedimentos e motivações. Nada muito profundo, diga-se, e ainda haverá um sábio pastor às margens do Reno dizendo-lhe que devemos fazer as coisas como sendo a última e, mais tarde, uma viagem a Palermo na qual Finn buscará “encontrar algo mais” e onde conhecerá uma restauradora italiana toda classicamente bela e toda sentimento e fé humana.

Nessa cidade, que é “a mãe de todos os portos”, segundo alguém diz, ele sofrerá ataques de uma figura sinistra, que lhe lançará flechas mortais. Flechas que somente ele vê, e que o farão ir atrás do encontro com essa figura, a Morte. A Morte (que, interpretada por Dennis Hopper, é toda boa gente e lhe ensina também a viver a vida) reclama ao fotógrafo que ela não queria ser temida, mas amada. Após conhecer a Morte, Finn torna-se um novo homem – e um novo fotógrafo, que passa a respeitar o objeto. A imagem que conclui a descoberta de Finn, a última do filme, chegaria ao nível da canalhice se não soubéssemos o quanto seu diretor anda bastante perdido neste mundo de imagens contemporâneo: troca-se o tom azulado frio por uma luz quente alaranjada, de comercial de margarina, com a italiana bonitona acordando com o toque solar no rosto. A discussão toda é rasa e de um equívoco constrangedor, neste que certamente é o pior filme de Wenders em anos, o mais feio e de visão de mundo mais ridícula.

Com sua proposta estética de extremo anti-naturalismo, contraluzes, saturações, desmembramento da imagem e reutilização da mesma em sobreposições de planos que Wenders acredita que possa discutir a questão da imagem em Palermo Shooting. Aqui, Wenders fala de Wenders, porque Finn, o fotógrafo, avançado além dos 40 anos, problematiza o tempo que agora parece passar rápido demais. O tempo, a idade, o vazio encontrado por essa duração longa de vida, portanto, são as causas para Finn problematizar o seu trabalho. Wenders, portanto, volta-se também para o tempo, a perduração e apagamento das coisas, assuntos também de seu cinema, o que faz deste novo filme um relato de um cineasta aos 63 anos. Wenders é a própria evidência desta morte da imagem e memória, pois a construção estilística do filme é um assassinato à forma. Wenders mata a memória ao utilizar referências a Dalí (na seqüência inicial, do sonho-pesadelo do protagonista com relógios e caveiras); ao Blow Up de Antonioni (a mais criminosa das referências, pegando memorabílias como o conversível, o individualismo e imersão de um fotógrafo, o hedonismo) e às artes pictóricas italianas. Wenders comete um roubo medonho, fraturando a relação desses elementos com suas experiências pretéritas. E coloca esse material junto às tais imagens estetizadas, interferidas ao limite do mau gosto.

Imagens bastante perdidas que correspondem ao discurso perdido de Wenders, uma vez que ele ingenuamente professa-se a favor de uma imagem verdadeira sem manipulação e com aura interna, mas em momento algum deixa de banhar suas captações com banhos de luz e frescurinhas pós-modernosas. Essa “beleza” é a que hoje está ao nível da saturação num cinema que poderia ser chamado de “arte para consumo”, o que vai de um Nuri Bilge Ceylan a um Jean-Pierre Jeunet, mas também (e muito) um novo “cinéma de qualité” que reprocessa algo entre Adrian Lyne e videoclipes. Vejamos bem: é o estilo cuja origem vem dos anos 80, mas que capturou outras imagens pelo caminho, o que se traduz, em síntese, à fotografia de tons frios quase monocromáticos. Essa “bandeira” dos nossos tempos (Meirelles a utiliza, ou Iñarritu, que a verte para tons mais “latinamente quentes”) faz lembrar de Asas do Desejo – que a cada novo filme fica mais claro como a placa sinalizadora da curva descendente na carreira de Wim Wenders.

Em seus filmes anteriores, como nos soberbos encontros ilustres de Nick’s Movie e Tokyo Ga, e mesmo no belo e problemático Paris, Texas, toda a discussão era tratada na própria realização do cinema, no drama representado. Após Asas do Desejo o discurso tornou-se uma aula explanativa, que parece querer usar a tela como lousa e a metalinguagem como o giz da sabedoria. Assim, o diretor trocou o drama pelo efeito. Nos anos 70/80, momento em que Wenders começou a falar sobre a natureza da imagem (imagem como final de um procedimento fotográfico, como resultado de toda uma realização complexa de produção, captação e exibição, como é o cinema – algo que está no soberbo O Estado das Coisas, 1982, por exemplo) ou sobre o deslocamento errante como sintoma de um apagamento do indivíduo (como em Alice nas Cidades, 1974), eram estas importantes discussões, a partir de toda uma experiência de cinema moderno que havia ido para algum outro lugar. Hoje, falar sobre a “imagem verdadeira” é uma grande agressão à inteligência, e maior violência ainda é esticar o assunto ao limite (ao limite da “imagem feita” e rasura de argumento) num filme como este Palermo Shooting.

Outubro de 2008

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