sessão cinética
O Vento nos Levará (Bad ma ra khahad bord),
de Abbas Kiarostami (Irã/França, 1999)
por Fábio Andrade
Para onde?
Visto
hoje, mais de dez anos depois de seu lançamento, é
bastante surpreendente a maneira como O Vento nos Levará,
à época um filme bastante típico e quase
esperado de Abbas Kiarostami, se revela um testemunho de crise.
Afinal, O Vento nos Levará é o último
dos filmes mais puramente narrativos (embora a pureza - dado etnocêntrico
que tantas vezes acentuou as leituras estrangeiras do cinema iraniano
- seja uma ambição que parece cada vez mais distante
dos horizontes do diretor) de Kiarostami, que, a partir de seu
longa de ficção seguinte (Dez), se dedicaria
a uma irmandade entre estrutura, dramaturgia e conceito que tornaria
seus filmes - de Dez a Cópia Fiel, a
aparente comédia romântica à qual Abbas Kiarostami
muito acertadamente se refere como um filme experimental - organismos
cada vez mais avessos a categorizações e análises
que se apeguem às partes para ignorar o todo. O Vento
nos Levará é não só o filme que
leva ao paroxismo (da perfeição) o trabalho que
o diretor fazia até então, mas também aquele
que funciona como uma auto-crítica de seus limites, sem
com isso desdenhar suas conquistas.
Temos uma equipe de filmagem em uma cidade no interior do Irã,
interessada em filmar os rituais locais de velório. Para
isso, é preciso esperar, torcer até, para que uma
velha anciã morra o quanto antes, minimizando a espera.
Pois espera é tudo que, de fato, teremos. Acompanhamos
o dia-a-dia da equipe junto às pessoas da cidade, em relações
decididamente orquestradas pela passagem do tempo. Até
mesmo nosso conhecimento das personagens - suas demonstrações
de doçura e de arrogância; a franqueza de seus interesses;
suas relações com a geografia da cidade - depende
da passagem do tempo, antecipando em alguns anos o minimalismo
narrativo que o diretor levaria às últimas consequências
no primoroso Five Dedicated to Ozu.
Mas, para além da superfície nada rasa de sua exímia
construção, há algo de profundamente metalinguístico
em jogo em O Vento nos Levará. Pois, como a equipe,
somos também colocados nessa lógica da espera pelo
fim - da cena ou da vida - imbricados como cúmplices de
uma atitude da qual somos levados a desconfiar moralmente pelo
próprio filme. É como se o filme provocasse suas
próprias crises, e ao mesmo tempo nos chamasse atenção
para o fato de que elas são provocadas por ele: não
são homens; são personagens. É por
isso que O Vento nos Levará se torna de fato um
filme de auto-crítica, à medida em que adota o mesmo
receituário que coloca em crise, e nos chama atenção
para o voluntarismo dessa adoção. Não há
distância possível entre o exotismo dos rituais fúnebres
interditos e as gloriosas estradas precárias de Kiarostami
- não à toa, em Dez o diretor abandona
de todo os caminhos e passa a se concentrar em quem está
dentro dos carros, na matéria humana que é sempre
capaz de se reconfigurar e escapar das reduções
narrativas.
No
fundo, O Vento nos Levará é um filme que
coloca em crise não só o cinema de Kiarostami até
ali (o que é Gosto de Cereja senão a espera
por uma morte?), mas toda uma forma de narrar. Há uma famosa
citação de Julius Epstein, roteirista de filmes
como Casablanca, que translucida a estrutura clássica
das narrativas cinematográficas: "Act 1: Get your
guy up a tree; Act 2: Throw rocks at him; Act 3: Get your guy
outta the tree". Não é exatamente isso que
está representado no já antológico plano
da tartaruga em O Vento nos Levará, em que uma
trajetória livre e desinteressada do animal é interrompida,
sem qualquer explicação, por um pé onisciente?
Não é esta a estrutura narrativa que o filme critica
e adota, ao mesmo tempo (o celular que não funciona; a
mulher que não morre; as ruas labirínticas percorridas
por uma vasilha de leite; etc)? O Vento nos Levará
aponta as limitações deste modelo, mas afirmando
que ele deixa brechas suficientes - como a pequena nesga de luz
que corta o breu onde vive a vaca, ou os raios que partem a escuridão
em ABC África, seu filme seguinte - para se criar
maravilhamento, em um trabalho que repensa e revitaliza as características
mais básicas do cinema: a relação de claro
e escuro no plano já citado; o fora de quadro com o personagem
do coveiro; uma indiferença material entre a vida e a morte
expressa soberbamente nas pedras do cemitério; o trabalho
expressivo das proporções, jogando o homem contra
uma natureza monumental e soberana. O Vento nos Levará
é um filme atordoado e alimentado pelo questionamento dos
limites do próprio cinema, de um diretor que se coloca
voluntariamente em um beco sem saída, talvez para tentar
apreender a beleza deste mesmo beco.
Julho de 2011
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