ensaios - especial retrospectiva 2007
Outros corpos
por Fábio Andrade

O corpo, porém, é questão ampla demais para ser encerrada em um recorte tão fechado quanto o da comédia americana. Se pensarmos em realizadores como Wong Kar-wai, Sofia Coppola, Claire Denis e Tsai Ming-liang, perceberemos que o interesse pela pele – que aproxima em contato, mas, ao fim, é a barreira intransponível que separa dois seres – e pela relação física com a câmera é chave para a compreensão do que de mais interessante vem sendo realizado no cinema nas últimas décadas. Este estado de coisas à flor da pele parece conectar o desejo que sentimos em filmes tão distintos quanto Felizes Juntos, Encontros e Desencontros, Desejo e Obsessão e O Buraco. O interesse por questões de superfície vem se tornando tão recorrente que poderia ser mais um dado em uma certa gestalt de cinema “de arte” contemporâneo, onde entrariam também a predileção por planos médios, as atuações esvaziadas, a estrutura dramática em tableaux. O ano de 2007 trouxe para o Rio dois filmes importantes que vêm subverter essa lógica: Mulher na Praia, primeira exibição em festivais brasileiros da obra de Hong Sang-soo, e Síndromes e um Século, de Apichatpong Weerasethakul (acima).

Embora Mulher na Praia seja uma continuação de um projeto de cinema que o sul coreano Hong Sang-soo tem bem definido desde seu primeiro longa (O Dia em que O Porco Caiu no Poço, de 1996), o ineditismo de sua obra no Brasil até então vem somar preciosos centavos à impressão que tento apreender neste texto. Apesar de sua estética não deixar de incluir alguns recursos comumente associados ao cinema identificado no parágrafo anterior – o uso de planos médios, por exemplo, é praticamente constante – Hong Sang-soo se mostra original justamente na relação com o corpo. Em primeiro lugar por partir do princípio de que os corpos estão em constante relação – os corpos em cena, e o filme como corpo onde convivem vários corpos (cenas, seqüências, planos, estruturas dramáticas, construções visuais, etc).

Hong Sang-soo trabalha o plano de conjunto com uma eficiência que há muito o cinema não via, buscando na construção de cena consagrada por Eric Rohmer a melhor maneira de encenar essa relação. Com Mulher na Praia, porém, o diretor aperfeiçoa uma técnica que começara a usar em Conto de Cinema: o uso do zoom vem redefinir essa relação entre os corpos, retirando e incluindo personagens das cenas à medida que sua presença é sentida no núcleo dramático. Uma cena em Mulher na Praia deixa esse movimento cristalino: acompanhamos a animada conversa do casal em vias de formação, até que um zoom out reenquadra a cena, incluindo em quadro o namorado indesejado que atravanca socialmente a nova relação, reconfigurando a nossa relação com aquela situação.

Assim como Apatow e Mottola, Hong Sang-soo é mais um diretor que constrói todo um projeto de cinema em cima da noção do constrangimento, e, muito por isso, as cenas de bebedeira são tão importantes aqui quanto em Superbad ou Ligeiramente Grávidos. Mais uma vez a sexualidade é retomada como questão complicadora (as cenas de sexo em filmes como Conto de Cinema, O Dia em que o Porco Caiu no Poço e Turning Gate são, quando não totalmente desastrosas, desprovidas de qualquer erotismo clássico), e o corpo revela sua ineficiência em expressar os sentimentos dos personagens.

Síndromes e um Século parece, sim, marcar uma mudança (embora sutil) na impressionante obra de Apichatpong Weerasethakul. Em Eternamente Sua¸ o diretor partia do mesmo interesse que conecta muitos de seus contemporâneos, pois se trata, sobretudo, de um filme extremamente táctil. Desde o plano inicial – o paciente que sofre de uma espécie de psoríase – a toda a pesquisa sensória que é sua segunda parte, o primeiro filme de Apichatpong exibido por aqui é de uma superficialidade absolutamente fascinante. Já Mal dos Trópicos, seu trabalho seguinte, partiria dessa mesma origem para rachar o corpo (e aí podemos pensar também no corpo do próprio filme, tão bruscamente partido em dois) em busca de uma sensorialidade espiritual e imaginativa. A superfície da primeira parte se espatifa nas profundezas sensoriais da segunda metade do filme, onde a imersão do espectador em seus próprios sentidos é mais importante do que uma atenção intelectual em relação à obra.

Depois da explosão que é Mal dos Trópicos, Síndromes e um Século vem, também pelo humor (se existe um gênero que pode abraçar o filme sem estrangular completamente sua força, esse gênero é a comédia), pensar uma nova relação com o corpo. O físico, em Síndromes e um Século, é sempre dissimulado, porque o que as personagens aparentam ser parece nunca ser condizente com o desejo delas: temos um dentista que também é cantor, um médico que tem medo de sangue, um monge que gosta de música pop e que reconhece sua santidade no fato de usar roupas açafrão, assim como uma prótese de perna se revela esconderijo para uma garrafa de bebida, um hospital vira pista de corrida para atletas e quadra de tênis para um de seus pacientes. Nesse sentido, o binômio mais claro em Síndromes e um Século vem evidenciar essa dupla-relação: a medicina, ciência da razão, é sempre aproximada do misticismo, de uma habilidade religiosa. Corta-se do busto do médico para a estátua de Buda com uma clássica estrutura de plano-contraplano, assim como uma médica decide tentar curar o paciente pelo estímulo de seus chacras.

O corpo do próprio filme é, mais uma vez, pensado por Apichatpong Weerasethakul: é forma que tem capacidade de mutar-se em aparência, em um constante devir. Por isso as duas partes do filme começam em bases tão semelhantes. São quartos de hospitais, onde médicos e pacientes conversam coisas bastante próximas (“veremos uma reencenação de tudo que se deu até agora?” pode se perguntar o espectador), mas que aos poucos vão se mostrando diferentes. São corpos parecidos, mas investidos de subjetividades absolutamente distintas. Saímos da relação sensória de Eternamente Sua e Mal dos Trópicos e passamos a uma relação retínica, onde as mudanças e correspondências se dão no plano das aparências, da geometria. Não à toa, a cena que melhor sintetiza seu filme de 2002 é reproduzida inversamente em Síndromes e um Século: em eternamente sua, o pênis em ereção se exibia em carnal frontalidade, enquanto, aqui, ele é escondido dentro calça.

Assim como em Superbad ou Ligeiramente Grávidos, saímos de um contato de peles e partimos para uma relação com o mundo mais internalizada, contida em seu movimento, mas vibrante e cheia de vida. Nesse trajeto mórfico do corpo (e a intenção desse texto era apenas perceber mudanças que vão, felizmente, seguir em fluxo de transformação), o que 2007 parece, casualmente, constatar, é que a maneira de o cinema lidar com o caráter físico do mundo se torna logo essencial, a partir do momento que uma câmera aponta para um corpo. Mas, uma vez filmado, esse corpo é também imagem, e como toda imagem, está inserida em seu tempo, em seu próprio corpus. Depois de despir o olhar de todo preconceito, Apichatpong Weerasethakul retorna ao início do olhar, na magistral seqüência da aeróbica onde um garotinho observa os movimentos dos adultos para, progressivamente, usar seu corpo para reproduzir aquilo que vê.

Março de 2008


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