Otávio
e as Letras , de Marcelo Masagão (Brasil,
2007) por Paulo Santos Lima Uma
mulher é uma mulher
O projeto de cinema de Marcelo
Masagão é uma permanente ameaça a Otávio e as Letras. Trata-se da idéia
(tão “autoral” quanto recorrente em sua obra) de encaixar seus personagens em
verdadeiros jogos de armar, desnaturando-os para utilizá-los como peças, componentes
de um diagrama bastante congelado, com relações funcionais e bem pouco humanas.
A sorte deste novo filme é que esse projeto nem sempre toma vulto aqui; o que
faz deste, sem dúvida, o melhor filme de Masagão. O
centro da história é São Paulo e seu oceânico fluxo de informações visuais encravado
na área infinita de concretos, prédios, ruas, massas asfálticas, bancas, revistas,
comércios etc. Otávio serve como uma ferramenta de intercâmbio com o meio que
o filme quer abordar, essa São Paulo como metrópole-solitude: cinza e cinzas,
indiferenças (o que é uma idéia bastante datada, quase um vulto dos anos 80, do
ótimo Wilson Barros). Otávio, solitário e meio excêntrico, coleta nos mais variados
impressos uma vastidão de palavras, letras, slogans e outras visualidades. Ele
não só faz uma “remontagem” pós-moderna do material coletado como intervém neste
com um arsenal de canetas Bic, fazendo sua arte, tacando a ponta da caneta em
fotografias familiares e outras coisas mais. A caricatura
aboba os personagens, como a freira torcedora do Corinthians, o taxista solitário
e o próprio Otávio, que parece um defunto. Crônica da cidade? Mas por que mostrar
a cidade por esses mentecaptos? Seria São Paulo mentecapta? Talvez, na sua hemorragia
de signos e significados, mas por que não arriscar mais usando seres em ação existencial?
O
escape ao projeto coisificante de Masagão é Arieta Corrêa. A atriz, muito mais
que sua personagem, Clara, justamente por sua presença física, corpo e face, inesquecível
no longa. Clara, refém desse jogo de tabuleiro das relações humanas segundo Masagão,
por algo misterioso, consegue inúmeras vezes ser efetivamente uma mulher de carne
e osso e seus dramas. Imagem e presença que escapam daquilo que o filme está querendo
nos mostrar. Ainda que seja um tanto evidente a intenção de se fazer de Clara
uma “peça” para estar na gangorra junto ao protagonista, Otávio, o filme lhe dá
um tempo de cena valioso – o que é mérito de Masagão, pois é ele quem assina o
filme. Clara, igualmente solitária, é mais comunicativa,
“no mundo”, e sua pescaria não é por palavras e signos, mas sim por imagens pictóricas:
rostos pintados por grandes artistas, como Matisse, Monet, Paul Klee e Edvard
Munch. Ela mesma, com seu rosto e corpo treinados na experiência do CPT de Antunes
Filho, é um belo desenho no filme: imagem que se faz arte digna dos gênios da
pintura. Mas o que significa essa coletânea que Clara faz para montar seu álbum
de família? A não-alteridade da imagem, ou esta como signo apenas, sem significados
e, portanto, aberta aos mais variados usos? Parece que sim. Mas
é mérito de Masagão o modo como ele filma a cidade, enquadrando-a com bastante
rigor, fazendo belas geometrias com os elementos dentro do campo, apontando letreiros,
concreto, vazios e alguns seres perdidos em seus caminhos (no caso, Otávio). Isso
é especialmente bom na seqüência do táxi, quando o filme assume sem medo as brincadeirinhas
cognitivas de Masagão mas se sai visualmente muito bem, com o mapa de ruas de
São Paulo forrando o interior do veículo, a passageira perguntando curiosidades
ao taxista — a passageira, no caso, é Clara, e só poderia mesmo ser. O
plano final, uma tomada da rua da Consolação mostrando o elevado Costa e Silva,
grande rio de concreto da geografia paulistana, outdoor ao fundo, merece atenções:
imagem que finalmente abastece bem a discussão que o filme inteiro tropeça no
desenvolvimento, imagem-síntese, pura, longe do blablablá no qual Otávio e Clara
explicam (a nós também) por que fazem aquelas colagens. Entre
acertos e erros, há três filmes nesse Otávio e as Letras: um filme sobre
seres humanos (onde Clara, mulher da imagem, é soberba como ser humano e Otávio,
homem das letras, é bastante caricato, um humanóide, um coisa); um filme sobre
São Paulo (em que só alguns momentos honram-no como tal); e um filme sobre relações
humanas (em que um ser humano e um “boneco” relacionam-se, e o que rende é um
jogo de tabuleiro freado pela humanidade e expressividade de uma atriz). De fato,
Clara é o melhor filme de Marcelo Masagão. Novembro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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