Os
Residentes, de Tiago Mata Machado (Brasil, 2010)
por Fábio
Andrade
Além
da ideologia
Em certo momento de Os Residentes, o
grupo de artistas-guerrilheiros que protagoniza o filme faz um
treinamento com armas que não existem, esquivando-se de
um inimigo imaginário que ele combate com granadas invisíveis.
A cena é emblemática pela clareza do ato que se
anula na convivência com seu próprio não-ato
e que, citando Jacques Rancière a respeito de Édipo
Rei em O Inconsciente Estético, "é
aquele que sabe e não sabe, que age absolutamente e que
padece absolutamente. Ora, é precisamente através
dessa identidade de contrários que a revolução
estética define o próprio da arte". É
desnecessária, portanto, a cena em que um dos integrantes
do grupo picha, em letras garrafais, suas ambições
em portas de armário: Os Residentes é um
produto da estética.
Muito apropriadamente, o filme se configura no
acúmulo de esquetes que, mesmo tendo uma relação
vagueante com o todo narrativo, se esgotam em sua própria
existência individual. Podemos sair do excesso como estratégia
artística de um Leos Carax para conversas que remetem diretamente
à economia dos filmes de Andy Warhol; as vinhetas combinam
elementos de pop art com deformações da
op art; toda uma estratégia de pose é desmontada
na auto-ironia de uma pergunta que Melissa Dullius faz a Gustavo
Jahn (não à toa, artistas e cônjuges na vida
real), em uma cena de diálogo absolutamente admirável:
"tu acha que eu sou uma encenação?";
Essa
consciência aguda de seus próprios limites é
o que configura Os Residentes como um filme impressionante
mas também um tanto irritante em sua coerência: toda
afirmação é posteriormente negada, toda postura
tomada é debochada na cena seguinte, todo saber é
contrastado ao seu não-saber, toda ação é
confrontada ao seu próprio padecimento. Os Residentes
é, portanto, um produto estético por excelência,
flutuante em sua própria latência, coerente a um
regime artístico fundado na incoerência de sua própria
existência, na ausência de fim que é sua finalidade.
É um filme que se joga no futuro com olhos que fetichizam
as guerrilhas do passado, mas que, ao mesmo tempo, sabe que fetichizar
a luta é a maneira de exterminá-la por completo.
Como Édipo, as personagens de Os Residentes fazem
da vida e do pensamento uma enfermidade, e de sua impotência
uma potência. Os artistas sobem paredes, ocupam espaços,
cobrem de terra a geometria dura de um telhado, promovem inversões
muito contemporâneas do dentro e do fora (dilema principalmente
encarnado na personagem de Dellani Lima)... mas, no fim das contas,
a casa vai ao chão, e o artista retoma sua tarefa de Sísifo,
empurrando morro acima suas pedras invisíveis. Os Residentes
é um longo prólogo de um filme que nunca chega a
começar.
Mas
se Os Residentes é um acúmulo de imagens,
é preciso ir ao encontro delas. É aí que a
relação com o filme se complica, pois em todos os
seus ditos não-ditos, em toda sua coerentíssima incoerência,
em toda sua sofisticada ingenuidade, os planos do filme se instalam
na memória, perturbam por sua plasticidade (muito fundada
em um trabalho excepcional de fotografia de Aloysio Raulino), instigam
pela solidez conferida a tudo que o filme afirma volátil.
É aí que o golpe maior se realiza: ao mesmo tempo
em que ele se afirma absolutamente ideológico, panfletário
até, a força de suas imagens transcende a ideologia.
Diante de fragmentos de extraordinária potência, a
ideologia que os costura se torna praticamente irrelevante. Sua
maneira esquiva de lidar com suas próprias afirmações
é contrastada à eloquência de seus planos, à
tessitura cuidadosa de cada sequência - mesmo que ela seja
ridicularizada no momento seguinte. A despeito das diferenças
entre crítico e filme, Os Residentes se espatifa
no encontro com os olhos e, como o grupo de protagonistas faz com
as casas que aparecem ao longo do filme, se instala no imaginário
de quem vê, para seguir se multiplicando após o fim
da projeção. E isso é algo que o cinema brasileiro
- mesmo em seu melhor - não proporcionava há tempos.
Novembro de 2010
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