O
Sol (Solnze), de Aleksandr Sokurov (Rússia/Itália/França/Suiça,
2005) por Eduardo Valente O
humano pelo divino
Primeiro, a confissão: depois da surpresa
inicial da descoberta do cinema de Sokurov, com Mãe e Filho (1997) e Moloch
(1999), fui gradualmente tomado por um desinteresse pela produção do cineasta
russo – no que ajudou pouco a retrospectiva que a Mostra de SP organizou de sua
obra, em 2002. Especialmente Taurus (2001) e Pai e Filho (2003)
me são enormemente indiferentes, por me apresentarem um cineasta cuja visão do
mundo, decadentista e auto-centrada, pouco fazia diferença. Tendo conhecido boa
parte de sua carreira, Sokurov parecia completamente perdido em meio a si mesmo,
não apenas repetindo uma determinada fórmula audiovisual, mas principalmente produzindo
filmes que não adicionam quase nada ao olhar sobre o cinema atual. Dito
isso, o fato é que O Sol recupera algum frescor na obra do cineasta, especialmente
na relação entre o homem e a História. Terceira parte de uma tetralogia sobre
homens de poder (começada com Hitler em Moloch; depois passando por Lênin
em Taurus), curiosamente este filme permite uma retomada do interesse pelo
humano em Sokurov justamente por retirar seu personagem principal (o imperador
japonês Hirohito) do âmbito do isolamento. Ou seja, justamente por não mergulhar
numa patologia da intimidade, e sim por espelhar a intimidade pelo olhar da figura
pública (no caso, com o peso de ser uma “divindade”), Sokurov retoma com Hirohito
um interesse pelo personagem, e não pelo mito. Seus movimentos
anteriores de desmistificação de Hitler e Lênin passavam excessivamente pela abstração
destes do ambiente externo a seu habitat mais direto, como se estes homens precisassem
ser retirados da História para poderem ser vistos de novo. Em Moloch, isso
até funcionava, tanto pelo ritmo um tanto hipnótico do filme, quanto pelo fato
de ser uma primeira experiência. Já em Taurus, o Lênin doente e sussurrante
se tornava rapidamente unidimensional – o que pode facilmente ser entendido pela
nacionalidade russa de Sokurov, e também pelo seu famoso desgosto pelo regime
comunista. Neste novo filme, curiosamente, a estética eminentemente ritualística
do cineasta (os constantes lentos movimentos de câmera, os cortes preferencialmente
em fusões – ainda que curtas, a quase ausência de cor numa imagem que parece curiosamente
velha e moderna ao mesmo tempo) parece muito próxima dos do também altamente ritualizado
Japão – adequando-se perfeitamente ao seu ambiente. Assim,
em O Sol, Sokurov parece conseguir olhar para Hirohito de frente, sem abrir
mão de sua estética particular. Isso se dá principalmente porque Hirohito surge
também pela visão e relação com os outros personagens – tanto seus servos, como
seus ministros, como o General MacArthur, como a imperatriz (em belíssima cena)
– e, por isso mesmo, com a História. O momento pelo qual ele passa também é mais
significativo do que o retratado nos filmes anteriores, já que não sinaliza apenas
decadência física e derrota iminente, mas principalmente uma mudança de estatuto,
do divino ao humano – marcado pelo uso nos créditos finais do discurso em que
sua voz é dirigida e ouvida pela primeira pelo povo. Por isso, Hirohito em cena
não é tanto um decrépito (Lênin), ou um patético (Hitler), mas muito mais uma
imagem em decomposição, em alteração – decomposição de dentro para fora. Com isso,
o personagem se torna muito mais vivo do que poderíamos supor. Além
disso, há dois momentos particularmente fortes no filme, onde o personagem precisa
“negociar” sua visão “palaciana” com a realidade exterior a ela: primeiro na viagem
de carro por uma Tóquio destruída; e depois nas conversas com os americanos –
que simplesmente desconhecem, não entendem ou preferem ignorar o “estatuto divino”
do Imperador. Neste sentido, é bastante forte e sutil (que é tudo que Sokurov
não vinha sendo) o momento em que Hirohito é forçado a abrir a porta na saída
do encontro com o general americano, um gesto que marcadamente ele não sabia fazer.
Nesta descoberta da humanidade pelo imperador, o cinema de Sokurov parece voltar
a olhar para seus personagens sem a lente de aumento distanciada que os parecia
tornar pequenas criaturas em experimentos (aliás, algo que o próprio Hirohito
faz no filme, curiosamente). Quando Hirohito escreve sua carta à nação, sob a
luz da Lua que entra pela janela (ela sim, um astro, enquanto o “imperador-Sol”
se torna apenas uma pessoa), é o cinema de Sokurov que volta a se iluminar pelo
reencontro com a humanidade. Tomara que seja um encontro que dure mais do que
um filme. Outubro de 2006
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