O
Solista (The Soloist), de Joe Wright (EUA, 2009) por
Rodrigo de Oliveira Pavões
não podem voar
O registro-padrão de Joe Wright
tinha sido, até aqui, o plano-sequência. É com ele que o diretor se virava para
tirar alguma graça dos fantasmas literários de Jane Austen em Orgulho e Preconceito,
e uma vez mais foi com ele que percebeu fantasmas de outra ordem, na literatura-dentro-da-literatura
de Desejo e Reparação. Isto muda em O Solista: ainda que vejamos
alguns planos longos e grandiloquentes, a estratégia de abordagem fundamental
é agora o movimento de câmera para frente, que abandona o plano geral até chegar
a um close do rosto. Não por acaso, são os momentos que o filme definirá
verbalmente depois, nas linhas de um diálogo, como aqueles de ocorrência da Graça.
É um termo cunhado pela ex-mulher e atual chefe do jornalista Steve Lopez quando
ele tenta explicar o que exatamente se dá com o sem-teto esquizofrênico e músico
genial Nathaniel Ayers quando este está em contato com sua arte. Um amor como
nunca se sentiu, uma vibração, uma pulsação junto ao cosmos, enfim, aquilo que
não é possível ver, mas que é a base de tudo sobre o qual o filme tenta se sustentar.
Na impossibilidade de filmar o infilmável, Joe Wright tentará representá-lo. De
uma certa forma, o ambiente social inglês servia bem a esse tipo de fetichização.
O infilmável de Orgulho e Preconceito estava bem distante de qualquer construção
de sentimento, de desenvolvimento dramático: não havia nada a ser construído de
fato num filme que retoma a mais estabelecida tradição narrativa romântica, com
personagens completamente dominados, tornados arquétipos pelo consumo de gerações
a fio, nada a ser revelado sobre suas personalidades, sobre seus conflitos. Revividos
para uma adaptação contemporânea, não restava o que se perceber deles a não ser
seus corpos, tomados como objetos de cena tão dedicados à perfeição da reconstrução
histórica de bom-gosto quanto qualquer candelabro valiosíssimo do cenário, e se
havia algo de potencialmente desafiador ali era exatamente perceber como estes
corpos estavam viciados – não só pelas relações sociais internas ao drama, mas,
sobretudo, pela decodificação exterior a ele. O plano-sequência, esse espaço estranho
em que o cinema supostamente parece mais se aproximar da vida, usado para filmar
cadáveres ambulantes, o movimento da câmera por salões empedernidos e vestidos
esvoaçantes como um bisturi que abre caminho pelo corpo numa necropsia, nada mais
justo. Desejo e Reparação levava isso ainda mais longe, pois não só não
havia possibilidade de ressuscitação (estão todos mortos de qualquer jeito), como
nem mesmo era possível brincar de Deus com esses pobres personagens (já havia
alguém no interior da trama encarregado disso). Se houve
algo realmente encantador no modo com que Joe Wright surgiu para o cinema foi
essa sua obsessão pela mentira, pela ficção mais desbragada e descolada do mundo
onde ela ecoaria depois, este nosso mundo. Mas O Solista é cheio de verdades,
e é delas que o cineasta quer nos convencer quando filma o rosto de Jamie Foxx
num zoom in admirado pela destreza do imitador que representa diante
dos nossos olhos aquilo que o jornalista só pode entender como sendo algo
da ordem do divino. Esta obsessão por tudo ver e tudo experimentar mina completamente
uma disposição expressa pelo próprio protagonista quando, diante deste músico-enigma,
cria um descompasso entre aquilo que nos oferece a trama e o trator estético proposto
por Joe Wright. É o moviemaker que o inglês sempre pareceu ser, antes de
qualquer coisa, se perdendo na obrigação de um storyteller para o qual
demonstra ter muito menos talento.
Tudo começa com a
incapacidade de reconhecer em Nathaniel Ayers a figura abismal que ele demonstra
ser (outro efeito colateral de se exigir o tour de force dramático de Foxx:
é possível que, em algum momento, acreditemos naquilo que os olhos vêem). Não
se tenta habitar a mente de um esquizofrênico sem esperar que dela se saia contaminado
pelas distorções de seu olhar e de sua experiência com o mundo, mas tudo o que
Joe Wright consegue perceber ali são os tiques narrativos que acompanham há anos
a representação do “louco genial”. As vozes em sua cabeça ecoam na banda sonora
corretamente espacializadas e acumuladas para
imprimir exatidão de efeito naquilo que é, por natureza, inexato. No domínio desse
mistério, a fluência narrativa será interrompida por uma seqüência psicodélica
em que flashes de luz colorida dançam sob a tela preta, tentativa de absorver
a emoção do músico diante de uma apresentação orquestrada de Beethoven na
língua da loucura do próprio músico (que língua é essa, no entanto, nunca
saberemos: é um filme de mímica, e não de filologia). O prazer e o delírio de
poder tocar um violoncelo de novo – depois de anos de marginalidade e miséria
nas ruas com um violino de apenas duas cordas como única referência artística
– recebe um clipe new age de pombos voando pelos céus de Los Angeles como
seu mais fiel simbolizador. Mas é com as mesmas gruas articuladas e em longos
planos-seqüência que Joe Wright filma pombos e sem-tetos da vida real, agrupados
pela produção para dar legitimidade ao entorno desta ficção-baseada-em-fatos-reais. Crer
em algum quociente de verdade talvez ainda salvasse O Solista como simples
estudo psicológico equivocado, mas o filme convoca uma intervenção na realidade
e vai mais longe ao bancar a idéia de que, devidamente maquiados e fotografados,
um sem-teto morador da cracolândia hollywoodiana pode ser usado da mesma
maneira que Keira Knigthley em salões de dança do século XVIII. O último dos letreiros
protocolares ao final do filme, onde se define que destino tomaram os personagens-da-vida-real
depois que a dramatização os abandonou, anuncia que “ainda existem 90.000 desabrigados
na região da Grande Los Angeles” – mas O Solista é incapaz de perceber
que estes também são personagens abandonados pelo filme tão logo seu serviço de
fiadores do real está encerrado. Resta a celebração da paz possível, onde Jamie
Foxx e Robert Downey Jr. se misturam à gente pobre dançando em câmera lenta. A
essa altura do campeonato, já não se pode permitir que o cinema mantenha tamanha
inocência diante disso que registra: leva muito mais que boa vontade e espírito
comunitário para perceber que os fantasmas literários anteriores são substituídos
por zumbis da vida real aqui, e filmar zumbis não é tão simples assim. Os pombos
seguem cruzando o céu a cada epifania vivida no nível do chão, mas este pavão
vistoso e secretamente misantropo chamado O Solista, este nunca sairá do
lugar. Dezembro de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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