in loco - cobertura dos festivais
Os Dias com Ele,
de Maria Clara Escobar (Brasil,
2013)
por Raul Arthuso
Demasiadamente
humano
Segundo a máxima do cineasta Jean-Luc Godard,
“todo grande documentário tende à ficção,
e toda grande ficção tende ao documentário”.
Para além do evidente jogo de palavras, marca notável
dos aforismos de Godard, a assertiva relaciona dois sistemas –
documentário e ficção – a princípio
tomados sempre como excludentes, e pode-se pensar que a primeira
oração da frase aponta o quanto um bom documentário
toca em aspectos geralmente tomados como ficcionais: ambientação,
personagens, relações. Ninguém hoje deve
ainda acreditar que seja possível captar o real em um documentário.
O gesto criador do cineasta diante de seu objeto de observação
o afasta progressivamente do documentário em direção
à ficção. Num momento em que o dispositivo
(a mediação) ganhou uma importância tão
inflada no documentário brasileiro, é interessante
refletir o quanto a obra de Eduardo Coutinho ou um filme recente
como Doméstica, de Gabriel Mascaro, apesar de
seus fortes dispositivos, são grandes documentários
pela capacidade de reconstituir um mundo pela fresta que separa
o observador do observado, um jogo entre a primeira pessoa que
filma e aquela que é filmada.
Tudo isso para dizer que Os Dias com Ele, de Maria Clara
Escobar, é um grande documentário. A cineasta tenta
fazer um filme com seu pai, Carlos Henrique Escobar, intelectual
auto-exilado em Portugal e com quem teve uma relação
mínima. Nesse filme, a diretora quer resgatar a memória
da ditadura de seu pai, relacionando-a com a memória ausente
da relação dos dois. Logo no primeiro plano, as
regras do jogo se esclarecem: incorporado o “antes da ação”
no plano, Carlos afirma não querer fazer uma entrevista
convencional; Maria Clara, fora de quadro, tenta guiar o pai para
conseguir o que deseja. Ao aviso da realizadora, seu pai, em plano
próximo, assume uma personagem, formal, articulada, fria
- o intelectual que Maria Clara quer romper para alcançar
seu pai. Carlos não quer fazer o filme proposto por Maria
Clara; e esta não quer o filme que seu pai está
disposto a fazer. Os Dias com Ele é um tour
de force, um dos grandes motivos da ficção
na medida em que personagens e conflito são o motor puro
da condução do filme.
Assim, o filme parte da força dessas duas personagens que
vão pouco a pouco mostrando suas armas para a conquista
da batalha, questionando-se mutuamente, expondo-se, colocando
em perigo gradual a tênue linha que permite a existência
do filme. Pois, se há uma batalha, é preciso que
as duas partes estejam prontas para o confronto. Por isso mesmo,
o que impressiona no primeiro contato com Os Dias com Ele
é o quanto se trata de um filme de personagens: Maria Clara,
filha e realizadora (nessa ordem) e Carlos, intelectual e pai
(nessa ordem também) vão brigar por um espaço
simbólico mediado pela câmera, onde não há
qualquer inocência de se alcançar a verdade ou a
realidade, mas as pequenas verdades que emanam desse espaço
simbólico do cinema. Por isso é importante lembrar
que o título se refere a “ele”, não
o pai nem o intelectual, mas o personagem encontrado pela câmera
dentro desta composição abstrata de relação
que só existe a partir da consciência tanto de Maria
Clara quanto de Carlos de que isso é um filme – consciência
que os dois têm e que perdem em certos momentos, mas recuperam
logo em seguida.
É admirável que a diretora vá, então,
na contracorrente de dois lugares comuns ao expor as personagens
(ela e o pai) dessa maneira no filme. Primeiro, a filmagem como
momento agradável e confortável para os envolvidos.
Em Os Dias com Ele, o fazer cinematográfico é
um campo de batalha infernal e doloroso, quase fulleriano,
mais do que os próprios cineastas gostariam de admitir.
Filmar não é algo natural e essa dimensão
do filme é a menos evidente: Maria Clara, apesar de filha
e do consentimento da família, é uma invasora. Muitos
planos atinam para a naturalidade com que Carlos interage com
os gatos da casa, com a esposa, com o filho mais novo, mas nunca
com Maria Clara, explicitado no momento em que se comunica com
ela por intermédio da esposa, ainda que a filha esteja
atrás da câmera, a poucos passos dele.
O segundo é o impasse. Há certo gosto pela impossibilidade
da realização e o fracasso do próprio filme,
desde pelo menos Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo
Coutinho, e reinflamado com Santiago, de João
Moreira Salles. O cineasta se coloca no espaço confortável
de propor um dispositivo, e sair com os louros de mostrar sua
derrocada. O gosto pelo fracasso passa ao largo de Os Dias
com Ele. Não há as metáforas iniciais
pretendidas pela cineasta, questões muitos gerais e quase
certas de escapar a qualquer filme, algo alertado por Carlos ao
citar Derrida sobre a impossibilidade do testemunho de alcançar
a verdade. Porém, há aqui uma memória específica
da ditadura e um testemunho possível da tortura quando
Carlos relata sua experiência pessoal, um trunfo do filme
e uma conquista da cineasta que insistira pelo relato do pai.
Estamos, então, diante de uma curva que leva a Os Dias
com Ele – a maestria de Maria Clara Escobar está
em resistir à tentação da distância
segura diante do material. Muda de sentido, mas não desiste
de atravessar os percalços da estrada. Nesse sentido, Os
Dias com Ele alcança a política: é
um filme-testemunho consciente das implicações de
não se chegar à verdade, mas nunca um filme sobre
a impossibilidade.
Há a possibilidade de o filme ter a dimensão de
seu dispositivo como linha mestra de seus debates, como Pacific
e Um Lugar ao Sol. A força do gesto unilateral
da diretora em manter a câmera o tempo inteiro ligada, usando
as rebarbas do plano, trazendo ao filme seu making of,
pode despertar questões éticas em relação
ao grau de exposição de Carlos por essa escolha.
Afinal, Carlos diz coisas terríveis para a filha (“Eu
nunca assumi filho nenhum. Eu só te assumi porque sua mãe
falou que ia abortar”; “A melhor coisa da minha vida
foi ter conhecido os gatos”) em momentos que não
são “filmagens” – algo estranho de se
dizer, já que o registro filmado está diante dos
nossos olhos. Evidente que não é possível
ignorar essas questões, mas é preciso lembrar que
a ética é uma via de mão dupla, existe como
mediação e não regra. Quando uma das partes
se sente prejudicada por essa mediação, ela pode
ser quebrada a qualquer momento e, então, pode existir
um confronto. O gesto “não-etico” de Os
Dias com Ele poderia diz muito sobre a personagem de Maria
Clara, quase sempre no fora de quadro, mas interpelada, encurralada
e por vezes agredida pelo pai em frente à câmera.
Os Dias com Ele é como um faroeste sem contra-campo.
O campo é expandido por esse contra-campo nunca dado a
ver.
O ponto alto acontece quando Maria Clara tenta convencer seu pai
a ler um documento burocrático do DOPS autorizando sua
prisão. Após a recusa, Carlos e Maria Clara discutem
agressivamente neste campo expandido, enquanto se vê apenas
uma cadeira vazia. Depois do duelo final, Maria Clara, como que
derrotada, mas sem pudor algum de atirar pelas costas, senta-se
na cadeira, frente à câmera, e lê o documento
– pouco interessante – que o pai recusara, num ato
de mesquinhez, birra e desespero, dando figura e forma final a
uma personagem até então sugerida como uma filha
ressentida em alguma medida e impaciente com uma figura mais forte
que ela. Esse ato final, de uma selvagem beleza, traz à
mente um dos momentos em que Carlos tenta questionar o projeto
da filha. Ao ser perguntada se estaria fazendo um filme sobre
ela, Maria Clara responde “Os filmes são sempre sobre
nós”. Ao expor em Carlos e Maria Clara características
demasiadamente humanas por causa de um filme, essa resposta de
Maria Clara é talvez a grande verdade de Os Dias com
Ele.
Janeiro de 2013
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