ensaios
O processo da verdade
Hellman, Kiarostami e alguns
vícios da contemporaneidade
por Fábio Andrade
Em O que é o contemporâneo?, Giorgio Agamben
- como lembrado recentemente por Cléber Eduardo em entrevista
à revista Filme Cultura - aponta a defasagem em relação
ao seu momento histórico como uma característica
essencial para o homem verdadeiramente contemporâneo. "Exatamente
por conta desta condição, desta desconexão
e anacronismo, ele está mais capacitado a perceber e compreender
seu próprio momento". Esse pensamento parece melhor
impresso em uma máxima de Schiller: "viva com
teu século, mas sem ser sua criatura". Mesmo que por
diferentes vias, tanto Schiller quanto Agamben apontam a importância
de se compreender as questões de seu próprio momento
histórico, mas com a atenção para não
se tornar presa fácil de suas armadilhas. Existem, porém,
obras que cravam os dentes na carne de sua época e, sem
buscar recorrer a esse distanciamento anacrônico e crítico
(como fazia Rohmer, por exemplo), usam a matéria-prima
das armadilhas contemporâneas como propulsão para
abrir novos caminhos e libertar o pensamento e a arte. São
obras que, mais do que se colocar de maneira anacrônica,
se embebem (sem se embebedar) do presente para poder criticá-lo,
negando o isolamento démodé sempre tão
próximo do autismo e da beatice lunática dos veteranos
de guerra; que preferem a correção de rumos ao esperneio
inútil de que o mundo mudou, mas não deveria ter
mudado. É o caso de Road to Nowhere, de Monte
Hellman, e Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami - não
à toa, dois filmes que nascem fadados a cumprir um penoso
ritual de má compreensão.
Road to Nowhere e o processo como cinema
Antes
mesmo de começar, Road to Nowhere joga toda sorte
de iscas às pressas conservadoras. Afinal, é o filme
que marca a volta do diretor aos longas após vinte anos
de afastamento, ínterim que poderia motivar uma vida inteira
de ressentimentos. Mas ele é, também, um filme livre
de qualquer saudosismo; ao contrário, sua realização
e seu universo ficcional estão fortemente marcados por
diversos símbolos atualíssimos: temos conversas
sobre Vipers e câmeras 5D - que têm presença
marcante em cena e em sua realização - e espaços
habitados por laptops, iPhones, vídeos em streaming,
DVDs, TV a cabo, MySpace e Facebook. Mesmo os inserts
de outros filmes - de Víctor Erice, Preston Sturges e Ingmar
Bergman - aparecem reanimados em TVs de alta definição,
com o pillar box do 16x9 que marca uma atitude igualmente
respeitosa e atualizadora da história. A aproximação
que Hellman fará deste universo está condensada
logo na sequência de abertura: um DVD-r é colocado
em um computador e a câmera se aproxima lentamente da imagem
que aparece na tela do laptop, até que o filme visto pelos
personagens tome toda a tela do cinema e se torne, também,
o nosso filme. É difícil imaginar movimento
mais eloquente: para se compreender uma imagem contemporânea,
é necessário mergulhar de cabeça nela, chafurdar-se
em suas viscerais combinações de 0 e 1, até
que não exista recuo ou distinção possível.
Só assim, após essa afirmação de proximidade,
é possível se apartar dela novamente para se posicionar
de forma crítica.
Essa espécie de vai-e-vem do olhar é determinante
em Road to Nowhere. Mesmo em termos materiais, a virtualidade
do vídeo será atravessada pela necessidade de se
achar algo de físico e de concreto em um mundo em que os
índices apontam para todos os lados, e qualquer decodificação
parece fadada à incerteza. A despeito da imprecisão
supostamente imposta pelas mediações, há
um mundo. Monte Hellman usa a agilidade porosa do digital
para ressaltar os tempos e os estados mecânicos desse mundo,
seja conservando todos os segundos necessários para que
um secador de cabelos seque o esmalte fresco sobre as unhas da
protagonista, ou o processo lento do braço mecânico
que localiza uma música em uma jukebox de discos
de vinil. Como Godard ou David Lynch - não à toa,
dois diretores a quem Road to Nowhere por vezes parece
se endereçar de forma crítica e frontal - Monte
Hellman vive a sua época justamente para não se
tornar sua criatura.
Nesse
sentido, é bastante ilustrativo que o filme trabalhe com
uma categoria que gerou toda sorte de especulações
críticas nos últimos anos: os chamados "filmes
de processo". Pois, assim como em Aquele Querido Mês
de Agosto, Moscou, História(s) do Cinema
ou a obra recente de Jia Zhang-ke, Monte Hellman cria camadas
diferentes de diegese que são articuladas em novas e novas
quebras, incorporando a equipe ao filme, e o trabalho dos atores
às personagens. Neste jogo, porém, há mais
pistas falsas do que possibilidades de revelação.
Pois o que parece ser afirmado a cada instante é que não
há quebra de diegese possível: quando se mostra
uma equipe de cinema em trabalho, ela deixa de ser uma equipe
de cinema e se torna, imediatamente, personagem. Em uma resposta
direta aos célebres créditos iniciais de O Desprezo,
em que uma câmera é apontada frontalmente para "a
platéia", clamando por sua participação,
Mitchell Haven (o alterego de Hellman, que carrega inclusive as
suas iniciais, interpretado por Tygh Runyan) aponta uma câmera
para a quarta parede, mas o que aparece não é a
platéia, e sim a própria equipe que realiza aquele
contraplano. Afinal, o que pode ser de fato investigado na obra
que não a sua própria construção?
Monte Hellman implode os limites de obra aberta e fechada de Umberto
Eco: uma vez que aceitamos o convite para completar os espaços
deixados pelo filme, somos trancados em uma prisão da qual
não há fuga possível. Toda tentativa de quebra
de diegese nos devolve, de forma impiedosa e incontornável,
ao próprio filme.
Essa diferença é acentuada por o processo dentro
de Road to Nowhere não ser o de Hellman e de sua
equipe, mas o do filme dentro do filme - que também se
chama Road to Nowhere, e conta com os mesmos atores,
em uma construção em abismo que solicita o 8
½ de Fellini. Mas sob essa luz do alter-ego, o que
nos garantia que o Miguel Gomes que aparece em Aquele Querido
Mês de Agosto, o Coutinho de Jogo de Cena,
ou o Godard de História(s) do Cinema estão
ali como diretores - pessoas reais - e não simplesmente
como atores que interpretam os próprios diretores? Ou melhor,
como fazer essa distinção uma vez que a articulação
do material não a faz, criando uma diegese que pode assimilar
toda e qualquer quebra, em uma fagocitose infinita? Por que tão
frequentemente nos permitimos tomar essas aparições
como um índice de verdade exterior ao filme - algo que
está intimamente ligado ao discurso dos "processos"
- enquanto assumimos a presença de Truffaut em Noite
Americana, ou de Hitchcock e Shyamalan em seus filmes, como
um cameo ficcional?
Mesmo
os maus filmes podem revelar a fragilidade dos atalhos do pensamento.
No final do primeiro episódio de Storytelling,
de Todd Solondz, uma aluna de escrita criativa relata em sala
de aula o estupro que sofreu do próprio professor. Ao final
do relato, ela o confronta e diz que o que escreveu era a verdade.
O professor e estuprador dá de ombros: uma vez que a verdade
é passada para o papel, ela se torna ficção.
Road to Nowhere, um filme infinitamente maior, enuncia
um sentimento parecido, mas de forma mais ambígua e, paradoxalmente,
definitiva. Pois todo o jogo de cores, texturas e registros que,
em tese, deveria distinguir as diversas camadas, e que poderia
ser tomados como guia para uma possível decifração,
não revela nada a não ser a impureza do próprio
filme, que incorpora todas elas sem respeitar as distinções
que elas tentam impor. Tudo se torna o filme, e é
tornado filme à medida em que é assimilado
por ele. Não há explicação possível
a partir da catalogação e decodificação
dessas camadas, pois elas são articuladas de forma a produzir
um todo orgânico que só pode ser pensado em sua integridade,
assumindo seu hibridismo e sua impenetrabilidade. Não há
revelação sobre a obra de arte a ser encontrada
na veracidade do processo, pois o processo está sempre
fora do filme, e não há verdade que interesse ao
filme fora de sua diegese. Em uma época tão fascinada
com as impurezas entre o mundo real e ficcional, ainda tão
refém da quebra de ingenuidade promovida pelo cinema moderno,
Monte Hellman marca diferença ao se assumir igual: a relação
entre um espectador e uma obra de arte parte de um pacto anterior
que ambos, por pura necessidade, estão fadados a sempre
restaurar, não importa quantas quebras a impureza intrínseca
dessa relação venha a promover.
Nesse sentido, é essencial que o personagem-problema de
Road to Nowhere, aquele que põe tudo a perder,
seja justamente um investigador. É ele, o patético
guardião da verdade obcecado com os fatos, quem tenta internamente
decodificar a veracidade dos acontecimentos, e impor ao mundo
ficcional - ao jogo de papéis que determina todas as camadas
do filme - uma verdade que lhe é externa. Mas quando a
arte é feita refém da realidade, ela é impiedosa:
os guardiões da verdade podem assassinar a musa, mas em
seguida serão sempre assassinados pelo artista. "You
don't want the truth, do you? You just want to make this into
some piece of shit Hollywood movie", acusa o investigador.
"No", responde Mitchell Haven, "I want to make
my piece of shit Hollywood movie!".
Interessa,
portanto, menos um desmonte das instâncias em conflito e
mais a busca de uma verdade da própria obra, criada justamente
por esse conflito. É aí que Road to Nowhere
se torna uma crítica bastante dura a Mulholland Drive,
de David Lynch, e ao tipo de quebra-cabeça que ele se propõe
a ser: onde Lynch enxertava estranheza pela deformação
do mundo filmado concatenado de maneira cartesiana e clássica
- com gruas e raccord - Monte Hellman promove efeito
semelhante pela própria estrutura aplicada à encenação,
sem recorrer a truques fantasiosos. Isso pode se dar pela incorporação
dos acasos da filmagem, pela forma que Hellman articula trechos
de outros filmes dentro de sua narrativa (basta um corte preciso
para transformar O Sétimo Selo em uma comédia),
ou pela maneira como o registro de diversas (todas?) cenas permanece
incerto e misterioso mesmo após o filme terminar. O que
interessa é menos a verdade do processo, e mais o processo
da verdade, a integridade desse produto auto-reflexivo e acidentado
que nos é oferecido com a mesma integridade de qualquer
outro filme. Quebrado em mim, mas ainda assim uno. Não
é à toa que a última coisa que se lê
após os créditos, e após todo o vai-e-vem
absurdo e rocambolesco de sua metalinguagem, seja um incontornavelmente
ambíguo: this is a true story.
Cópia Fiel e o cinema como realidade
Cópia
Fiel é outro filme que, a começar pelo seu
título, se oferece como alimento para toda sorte de falsas
questões. Parte delas parece ter ocupado, recentemente,
o blog de Jean-Claude Bernadet com diversos posts - alguns bastante
interessantes - e comentários sobre o filme. Mesmo quando
eles apontam para a impossibilidade de se determinar certezas
na diegese, a tônica geral é do desvelamento, da
busca por evidências de verdade na construção
- ou melhor, de evidências que adéquem a verdade
do filme à verdade do mundo. O casal se conhece desde o
início? Quanto tempo, no mundo vivido pelas personagens,
dura o filme? Qual das relações encarnadas pelos
arquétipos de Juliette Binoche e William Shimell é
anterior, e qual se desdobra dessa primeira condição?
Por diversas vezes, Bernadet chega à verdade como um processo,
como algo que é constantemente alterado pelo próprio
filme.
É natural buscar por significados nas determinações
estruturais de uma obra de arte, já que é justamente
por elas - pelo emprego material das habilidades do artista -
que seu espírito se manifesta. Mas Cópia Fiel
não só nunca será esgotado pela análise
dessas estruturas, como elas são motor para novos desvios.
Toda a precisão da construção de Kiarostami
produz mais imprecisões; nunca saberemos quando o casal
se conhece, quando a relação se transforma, pois
as cenas são construídas de forma a justamente estilhaçar
esses definitivos. É possível dizer tanto uma coisa
quanto o seu contrário, e o efeito do filme reside justamente
nessa bipolaridade. Como em Road to Nowhere, importa
menos a relação de veracidade da cena com uma lógica
que lhe é externa, e mais a verdade interior à própria
encenação: não sabemos quando o casal se
torna um casal, se é que se torna um casal... mas quando
eles interpretam um casal, há um comprometimento
finalista e irrestrito com esse jogo de papéis. Naquele
momento, eles são um casal. Nenhum espectador
há de duvidar.
Não
deixa de ser curioso que justamente Kiarostami, cineasta frequentemente
pensado por sua relação com o documentário
ou mesmo como um neo-neo realista, seja hoje quem melhor expõe
os limites de uma relação estritamente realista
com as obras de arte. Cópia Fiel é construído
de forma a iluminar suas próprias limitações
materiais (e é importante perceber que tanto Kiarostami
quanto Hellman vão buscar um meio ainda mais restrito para
trabalhar: o vídeo), abolindo a perspectiva e a profundidade
de campo em nome de uma construção que só
pode ser 2D. Toda perspectiva é a mímese de uma
apreensão do mundo externo (e aí reside uma das
maiores ironias do título do filme) onde existe, de fato,
profundidade; o cinema, ao contrário, é necessariamente
raso, plano, mesmo quando projeta imagens que, em sua constituição
mundana, no espaço apropriado como cena, tenham características
que iludem essa limitação. A perspectiva na composição
pictórica sempre foi um truque. Cópia Fiel
promove um raríssimo divórcio entre essa construção
e as imposições visuais do mundo: não há
perspectiva ou profundidade de campo possível quando o
material de trabalho é, na verdade, uma superfície
chapada, uma tela branca na parede de uma sala. O material do
cinema não é o mundo que é exposto nele,
mas a própria tela.
Kiarostami
usa o vídeo para tornar essas camadas ainda mais sobrepostas,
ainda mais indistintas. Isso acontece desde os reflexos da cidade
no vidro de um carro - tornando o rosto dos passageiros e a cidade
refletida um mesmo e único borrão - até às
relações de profundidade dentro de uma cena, de
um espaço. Em determinado plano (foto), Kiarostami coloca
uma noiva olhando um rito que aconteceria, de fato, às
suas costas. Na composição, porém, o segundo
plano é chapado lateralmente ao primeiro, de forma que
a ação de fundo divida o mesmo plano de representação
da atriz que está à sua frente. Dentro da composição,
as camadas de profundidade se chapam em lateralidade: é
perfeitamente possível que a personagem olhe e interaja
com o que, no mundo físico, estaria às suas costas.
Com isso, Kiarostami neutraliza qualquer busca de verossimilhança,
de correspondência no mundo real, na armação
do filme. Se a princípio isso pode parecer irônico
em uma refilmagem livre de Viagem à Itália
- filme de Roberto Rosselini, diretor tomado por André
Bazin como encarnação viva da vocação
fotográfica do cinema em representar os tempos e espaços
do mundo em sua integralidade de relações, e por
um trabalho exemplar da profundidade de campo - Kiarostami faz,
a seu modo, uma atualização do neo-realismo rosseliniano;
a única diferença, é que o realismo possível
hoje está não mais na fidelidade ao mundo representado,
mas na realidade da própria representação.
É justamente por isso que a composição pictórica,
em Cópia Fiel, é necessariamente improfunda,
sem ponto de fuga (com exceção significativa, e
conscientíssima, para o último plano do filme):
o mundo mudou, a compreensão da imagem hoje é outra
e, mais do que denunciar uma falsidade de construção,
apontar as limitações técnicas e simbólicas
do aparato é um gesto de fé na força da própria
imagem. Revela-se o truque não para desmontá-lo,
como em Made in USA, mas para reafirmar o seu poder transformador
quando assumido como construção. Cópia
Fiel está mais próximo do cinema de Rouch do
que de qualquer outro da Nouvelle Vague.
Cópia Fiel parece ainda se apropriar da imaterialidade
do vídeo para criar uma impressão de metamorfose,
como se o filme fosse uma relação de forças
imateriais que podem obrigá-lo a tomar novas formas, assumir
novas estruturas, jogar por outras regras. Se a diegese permite
que um casal de estranhos esteja, de repente, casado há
anos, tudo é possível. Basta uma conversa em uma
cantina para que dois estranhos se tornem um casal em crise; basta
uma sugestão estrangeira (que, não à toa,
vem de uma
italiana - trazendo consigo toda a força histórica
que o cinema italiano tem no mundo, e especialmente no cinema
iraniano) não ser desmentida para ela se tornar verdade,
e o filme se reestruturar todo por conta desse mal entendido.
Pois ali, dentro daquele pacto entre atores e espectadores, aquele
mal entendido é mais verdadeiro do que qualquer verdade.
Pouco importa que o quadro cinematográfico seja centrípedo
(embora exista um tratamento de som que inclua frequentemente
mais do que o que está em tela), pois o mundo ficcional
já é naturalmente fugidio. Por mais que o quadro
determine uma certa regra, e os requisitos do cinema de gênero
projetem sobre a trama e as personagens uma série de expectativas,
elas sempre encontram margem para se esgueirar e não deixar
que nossas expectativas e demandas as reprimam. Como Road
to Nowhere, Cópia Fiel é um filme
que presenteia suas personagens com incessantes possibilidades
de fuga. Mas essa fuga só pode ser para dentro
do filme. E nessa afirmação de mistério e
beleza, os dois filmes deixam de ser grandes para se tornarem
infinitos.
Agosto de 2011
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