Nossa Vida Não Cabe num Opala,
de Reinaldo Pinheiro (Brasil, 2008)
por Eduardo Valente

Marginal chic

Desde o começo de Nossa Vida Não Cabe num Opala, há bastante claramente duas forças inspiradoras em jogo por trás desta tardia estréia em longas do diretor Reinaldo Pinheiro (realizador com uma série de curtas no currículo, entre eles o interessante BMW Vermelho, mistura de comédia e crítica social). A primeira, e mais óbvia, é a do teatro de Mário Bortolotto, dramaturgo que escreveu a peça em que o filme se baseia (e cuja adaptação já rendeu muita polêmica pela internet, assunto sobre o qual certamente não trataremos); e a segunda é a do cinema paulista dos anos 80 (não por acaso época em que Pinheiro realiza seus primeiros filmes), algo que o filme deixa bem claro já na primeira cena em que a câmera desce por um sinal de neón (o cinema paulista da época foi batizado por alguns de “neón-realismo”) de um certo Bar Anjos da Noite, em uma clara referência a um dos filmes mais reconhecidos do período (e cujo cartaz adorna o interior do bar, como veremos mais adiante no filme), Anjos da Noite, de Wilson Barros.

Há bastante em comum entre o trabalho de Bortolotto e o de Barros, a começar pelos universos eminentemente noturnos e marginais onde trafegam seus personagens, atraídos pela poesia do patético que emana dos seus personagens que dificilmente se encaixam nas normas. Igualmente determinante para a influência dos dois no filme de Pinheiro, como o próprio título faz pensar (a partir da incorporação do Opala como objeto do “trabalho” marginal da família Castilho), é um imaginário que deve muito aos anos 80 (não por acaso, em outra sub-narrativa do roteiro o disco de vinil também surgirá como um certo fetiche retrô na imagem) – sendo que Bortolotto surge para o teatro nesta mesma década, quando começou seu trabalho em teatro, ainda em Londrina (depois ele seria incorporado à cena paulistana, tão cara ao cinema de Barros – e de Pinheiro).

No entanto, o filme de Pinheiro esbarra em dois sérios problemas nesse abraço que faz a um imaginário que se referencie a estas duas fontes: o primeiro é que, afinal de contas, se passaram mais de vinte anos desde os anos oitenta. Assim, onde o neón-realismo de Barros e outros parceiros (como Chico Botelho, diretor do igualmente exemplar Cidade Oculta) significava ao mesmo tempo uma relação bastante direta com o seu momento histórico dentro da linguagem cinematográfica (os anos 80 eram, afinal, marcados pelo abraço ao artifício radicalmente assumido), ele também trazia um diálogo de oposição com um cinema brasileiro imediatamente anterior (pós-Cinema Novo); um cinema de valorização de uma certa noção de “brasilidade” que passava por ideais bem distintos do que eram os daquele grupo. Ao retomar algumas características do imaginário deste cinema, sem no entanto propor nem uma revisão nem uma atualização do mesmo (como tem feito, constantemente, o cinema de Guilherme de Almeida Prado, por exemplo), o filme de Pinheiro soa, mais do que anacrônico, bastante deslocado e incerto nos seus objetivos como obra, patinando entre um certo artificialismo de construção e um realismo de espaço que resulta bastante problemático.

O que nos leva ao segundo ponto delicado do registro é a velha questão do problema da transposição do teatro para o cinema – problema que não esbarra nem na generalização que é opor texto à imagem, nem na questão do realismo. O que acontece é que dentro do filme de Pinheiro há uma constante superposição de registros que colocam o espectador numa distância muito grande daqueles personagens, sem grandes efeitos brechtianos a partir atingidos por este distanciamento. Entre o texto de Bortolotto (via adaptação de Di Moretti, mas já prometemos não tratar deste tema), a forma como Pinheiro filma os espaços (internos e externos) e o próprio uso de elementos como a trilha sonora, o filme parece trafegar constantemente num meio termo, onde nem há a sensação de um verdadeiramente radical mergulho num universo marginal (frases como “tô enjoada desse cheiro de carne podre” ou “eu sou um junkie de merda” parecem slogans mais do que verdades dos personagens), nem um registro irônico efetivamente funcional que transfigure esta marginalidade por uma outra via. O que resulta disso tudo é um tom cínico de um certo marginalismo chique, do tipo que se elogia pelo trabalho dos artistas em montá-lo com cuidado a cada passo, mas não sente-se de fato.

Assim, o filme passa pelo espectador como uma montanha-russa de cenas cujos registros não provocam qualquer empatia (nem simpatia, nem antipatia) pela fauna dos personagens em cena – talvez o exemplo mais radical sejam as cenas da personagem de Maria Luisa Mendonça, espaço maior da teatralidade no filme, que nunca chega a se tornar mais que uma figura de linguagem levada à exaustão por um tempo cênico mal resolvido. E, quando o clímax coloca os irmãos Monk e Slide frente a frente num ringue de boxe, percebemos que a catarse buscada não acontece porque o espectador não sente de fato algo por nenhum dos dois personagens.

Finalmente, um último problema aflige Nossa Vida Não Cabe num Opala, algo que começa a ficar claro em escolhas de elenco como as de Leonardo Medeiros e Milhem Cortaz (atores-fetiche do atual cinema paulista) para interpretar personagens que são quase decalques de suas características mais marcantes em tantos personagens anteriores – mas que se tornará latente mesmo no uso que o filme faz das personas de Paulo Cesar Pereio (quase um patrimônio da marginalidade cachorra no cinema nacional) e de Dercy Gonçalves. As escolhas destes nomes (num trabalho de elenco que chama a atenção pela estrutura “dó de peito”, em que cada ator parece estar querendo brilhar a cada cena) são exemplos de algo que vai se repetir em várias escolhas do filme (personagem bêbado – câmera balança frente a ele), que parece escolher solucionar-se um tanto da maneira mais fácil e óbvia.

Agosto de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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