Ó Paí Ó, de Monique Gardenberg (Brasil, 2007)
por Eduardo Valente

Teatro popular brasileiro

Não é difícil falar mal de Ó Pai, Ó – pelo contrário, ele convida ás piadas fáceis a cada seqüência. Além de sua evidente extravagância, por ser um tanto mal filmado (especialmente no começo), com uma câmera incerta no seu posicionamento, eventuais cortes abruptos, uma música incidental que às vezes entra rasgando nossos ouvidos. Fora isso, sua estrutura dramática parece num determinado momento uma seqüência de esquetes cômicas altamente teatrais (fonte original do filme, não custa lembrar). Mas me parece claro que há muito mais coisa acontecendo ali do que apenas isso.

A começar pela força do seu elenco – e aqui me refiro especificamente aos não-famosos (embora Lázaro Ramos esteja muito bem e Wagner Moura encontra mais felicidade neste registro tons acima que em alguns de seus papéis naturalistas – já a presença de Stênio Garcia parece realmente dispensável, enquanto Dira Paes parece no piloto automático). Todos os principais personagens do filme têm pelo menos um momento de brilho intenso na tela, daquele tipo que é difícil negar quando um ator atinge: começando pelos garotos (em quase todas as cenas), e passando por Tânia Tôko (“Neusão”), Érico Brás (“Reginaldo”), Luciana Souza (“Joana”), Emmanuelle Araújo (“Rosa”)... Estes atores são a força-motriz do que o filme (que foi feito a partir do trabalho deles) tem de melhor. E dizer que eles parecem “ser” e não “interpretar” seus personagens não significa, neste filme, uma defesa de um realismo-naturalista.: significa que sua performance parece irmanada com a performance de seus personagens em cena – uma performance que, como o filme, reproduz um retrato acurado de um espaço através do artificialismo desbragado.

“Retrato acurado pelo artificialismo”? A frase dificilmente faria sentido, não fosse este lugar o Pelourinho: zona da capital baiana “revivida das cinzas” pelo viés do turismo exótico e da axé music (processo ao qual o filme faz referência), onde História, tradição, fantasia e cenário inventado convivem numa estranhíssima (des)harmonia. Só quem já esteve no Pelourinho pode atestar: estar lá é uma estranha experiência de realismo surreal. E é justamente isso que o filme de Monique Gardenberg parece mais feliz em capturar (e sua origem teatral certamente ajuda bastante nisso): o estado de encenação constante vivenciado por todos aqueles que ali transitam. Não se trata apenas de encenação "espetacular" para a câmera: todos os protagonistas de Ó Paí, Ó intepretam personagens no seio mesmo de suas vidas: os meninos que se fingem carolas, a exilada que finge ser bem sucedida e casada, a carola que finge que o marido ainda vai voltar para ela, o "machão" que tem um caso homosexual, o "marginal malandro" (Boca) que tem medo de ser desmascarado como apenas mais um mané... Todos em Ó Paí, Ó estão o tempo todo em estado de teatro.

MasÓ Pai, Ó não se contenta em se passar no Pelourinho: se passa no Pelourinho em pleno Carnaval. Artifício dos artifícios, encenação das encenações, portanto: um estado onde quase tudo pode ser natural, toda fantasia pode ser real. Daí porque não parece nem um pouco estranha a disposição dos personagens de Ó Pai, Ó ao estereótipo, à tipologia, às cenas de dança e música repentinos. A sua consciência de encenadores (de uma crendice, de um poder mediúnico, de uma malandragem, de um apetite sexual) é total – basta ver todas as cenas com os turistas em cena, onde os personagens assumem sempre seu domínio sobre o estado de teatro.

Aderir à narrativa de Ó Pai, Ó, portanto, requer do espectador uma operação à qual ele está muito pouco acostumado: entre a farsa ou o realismo, aceitar os dois. Não por acaso o filme se presta a ser chamado de explorador de uma situação social ou também de fantasia hedonista: aquele espaço onde ele se instaura é assim – e assumir isso é talvez o grande salto de coragem que o filme dá. Esta simples operação consciente de ir a um espaço real sabendo-o tão teatral (teatro musical, no caso), e reproduzir na forma mesmo do seu filme este naturalismo artificial ou este artificialismo natural já cria resultados muito mais instigantes do que a maior parte do atual cinema brasileiro “morto” (seja em seu naturalismo ou em seu artificialismo, ambos altamente banais).

No retrato deste cotidiano nada “rotineiro”, para o filme vale tudo: um pai de família que come o vizinho gay, uma dona de bar sapatão e brigona, dois moleques que passam a perna em um monte de gente, uma falsa médium, uma imigrada fracassada que se prostitui, uma aborteira, vários usuários de drogas... Mais do que um elogio à malandragem ou um retrato de “mundo cão”, há aqui um amoralismo sincrético, onde tudo isso surge em cena não como uma questão, mas como um fato da vida do ambiente onde os personagens vivem – tão relevante quanto a música axé, a comida baiana ou a torcida de futebol. Ao trabalhar esta idéia do “espírito do carnaval constante” numa Bahia altamente empobrecida e dura, o filme o faz com intensa vitalidade, sem culpas nem teses simplificantes. Há um mergulho radical (porque incorporado na forma do filme) num universo, e pronto. Tanto que no final, quando passamos da morte dos dois meninos (antes já anunciada quando uma personagem diz “parece até polícia, só falta chacinar”) para a continuação da festa em outro espaço e do êxtase sexual (um tanto automático) em outro, me parece menos um “fecho chocante” do que uma continuidade do que o filme já mostrava até então: todos estes aspectos fazem parte de um mesmo ambiente.

Não é a menor das qualidades de Ó Pai, Ó o fato de que ele desça como um OVNI sobre o cinema brasileiro de 2007: ele encarna a dificuldade de lidarmos com um filme que busca contato com um cinema popular ao mesmo tempo em que faz um retrato bastante acurado de um pedaço do Brasil, sem fazer para isso uso de um naturalismo discursivo. Com todos os seus defeitos, trata-se de um filme com várias implicações inéditas na minha experiência do cinema brasileiro (recente), difícil mesmo de saber (até) onde ele iria a seguir. A meu ver, antes isso do que mais um exemplar do “cinema de autor para mexer com vocês na sua passividade de espectador” – este sim, um número já bastante repetitivo. Em todo seu excesso, em seu flerte aberto e desbragado com uma cultura popular brasileira “que não ousa dizer seu nome”, Ó Pai, Ó é um autêntico filme que choca – para o bem ou para o mal.

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta