in loco - cobertura dos festivais
Onde Borges Tudo Vê, de Taciano Valério (Brasil, 2012)
por Raul Arthuso

O "fora" no centro

Chegando a Tiradentes, é tentador olhar para o filme de abertura da Mostra sob o prisma da temática central proposta pela curadoria: o “fora de centro” – a descentralização dos polos de produção, mas também das narrativas. Esse impulso se coloca mais forte ainda por, no caso de Onde Borges Tudo Vê, as escolhas pela rarefação, a distensão dos tempos dos planos e a fragmentação do olhar remeterem a uma idéia canônica de cinema contemporâneo, mas principalmente alinharem o filme ao específico caso brasileiro, gritando sua afinidade com o cinema de uma geração que se iniciou no longa-metragem nos últimos cinco, seis anos. O contemporâneo tem sido central nas discussões sobre o cinema brasileiro, muito porque os filmes mais interessantes desse período têm um desejo marcado que pode dar tanto no equívoco de criar uma forma “cinema contemporâneo” – dead end da mais infértil produção brasileira recente – quanto em abrir caminhos e possibilidades de lidar com as questões do mundo neste momento – definição dada por Inácio Araújo em debate no festival para o “ser contemporâneo”.

Esse desejo se coloca muito forte em Onde Borges Tudo Vê: rarefação e distensão são palavras de ordem, e a adesão formal com algumas tendências do cinema do presente fica clara. Há um prazer pela encenação de longos diálogos em poucos planos-sequência fixos, a tentativa de burilar o significado e a entonação de cada réplica, a pontuação de cada frase, gesto ou movimentação no decurso do tempo da câmera ligada. É a dialética entre a simplicidade dos planos e o rigor da encenação que marca a maestria dos últimos filmes de Manoel de Oliveira e Abbas Kiarostami, mas aqui encontrada em outro estágio – um desejo mais que uma concretização.

Nesse sentido é que Onde Borges Tudo Vê se manifesta como um típico caso do contemporâneo pela forma, da narrativa que se faz em distensão e mistério dos dados da orientação do espectador. É aí que entra o jogo com Jorge Luís Borges e sua modernidade narrativa, um encontro do clássico com o ensaio, a digressão e a centralidade, o poético e a objetividade criando uma síntese, pela narração, do que há de mais mágico e pueril na ordenação do pensamento humano. O caminho sinuoso traçado por Borges é como um espírito guia do filme, um exemplo acabado na modernidade que, trazido para a contemporaneidade, é um ideal que Onde Borges Tudo Vê almeja.

Por outro lado, o que preenche essa forma se faz de uma temática ao gosto borgiano: um velho cego diz ter um original do livro perdido do escritor argentino, que acaba como centro de uma trama de roubo e chantagem. Onde Borges Tudo Vê investe na articulação de uma história romanesca cheia de reviravoltas, de uma trama que costura e dá sentido à existência das personagens que, dentro deste terreno, segue uma lógica clássica de identificação psicológica e um sentido que encontra sua explicação dentro do próprio romanesco. Contraditoriamente a seu processo formal, o filme se organiza pela centralidade, cria sentido para o mistério, entrega os dados de seu entendimento para desenvolver sua história, e busca dentro desse romanesco a clareza que o faz essencialmente romanesco.

Então, se nos rendêssemos à tentação de olhar o filme pelo viés do “fora de centro”, concluiríamos que Onde Borges Tudo Vê é um filme centrípeto: ainda que nem tudo esteja inteiramente codificado, claro e organizado, articulado dentro de uma lógica que visa o acabamento, a inteireza e completude – associado em geral ao clássico – o importante é notar o quanto seus elementos são chamados ao centro e tendem a uma organização pelo romanesco. Essa tensão é que termina por torná-lo um filme disforme. Essa força centrípeta é muito sensível na ausência quase total de extracampo, ainda que Onde Borges Tudo Vê tenha muitos planos longos e fixos. A maioria dos diálogos se dá dentro de quadro, as movimentações tendem a puxar o que sai do campo de volta para ele, o som não pontua o extracampo a ponto de perceber algo para além do que se vê. O motivo visual que mais marca o filme é a profusão de espelhos e superfícies reflexivas, e o reflexo traz para dentro do quadro, com imagem invertida, o extracampo.

O filme é, portanto, a ação do impulso centrípeto de trazer para o visível o que está além do campo de visão, sugar o extracampo para dentro do quadro, impedir que personagens, objetos, olhares e sons escapem. Por outro lado, por seu caráter reflexivo, os elementos vêm a quadro distorcidos. Nessa ontologia do filme se encontra seu contrassenso fundamental de ter um “jeitão” contemporâneo, mas também, em essência, uma alma romanesca em que o extracampo é trazido ao centro da imagem, o fugidio é aprisionado no quadro, o misterioso é límpido, o rarefeito é truncado por um peso.

Janeiro de 2013

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