Apenas Uma Vez (Once),
de John Carney
(Irlanda, 2006)
por Eduardo Valente

A questão do cinema

Em recente texto publicado na Folha de S. Paulo acerca do filme Maratona do Amor, o cinético Paulo Santos Lima insinuava que o que mais interessa encontrar na análise de um filme são argumentos quanto a suas qualidades cinematográficas. Longe de discordar em linhas gerais da afirmação do amigo, mas a questão que se deve colocar a partir da afirmação acima é o que constitui de fato uma “qualidade cinematográfica”. Sim, porque se optarmos por privilegiar como tal acima de tudo as qualidades referentes ao aparato fílmico propriamente dito, não seria equivocado afirmar que este Apenas Uma Vez configura-se num quase desastre. Isso porque John Carney parece imbuído de um entendimento (não incomum, aliás, ao contrário, bastante lugar comum) da linguagem do cinema digital, especificamente aquele caracterizado pela realização com levíssimas câmeras semi-profissionais, a partir da quase exclusividade da câmera na mão em incessante movimento, a ser posteriormente complementada por uma edição “vale-tudo” que conecta planos sem qualquer preocupação maior com a construção de um espaço ou mesmo de um ritmo específicos do drama. Como eu dizia, se pararmos por aí, Apenas Uma Vez é pouco mais o que o desastre acima mencionado. E, no entanto, não é assim que ele se configura na tela – o que deixa claro que é preciso cavar um pouco mais fundo nesse mistério do tal “específico” cinematográfico.

Podemos começar então com a questão do carisma do ator cinematográfico, algo que antecede talvez a intervenção do cinema entendido como processos de filmagem/montagem, mas que nunca estará fora das escolhas de um realizador de cinema – ainda mais no caso do uso de um ator ainda totalmente desconhecido como é o caso do Glen Hansard deste filme. Pois o fato é que, da primeira vez em que surge em cena interpretando suas canções na praça, e depois na cena com o mendigo que se revela um conhecido, Hansard consegue impor ao filme um magnetismo da sua presença dramática, que se dá menos por alguma grande capacidade de interpretação de um personagem do que por sua simples presença na tela. E como Apenas Uma Vez gruda-se ao seu personagem praticamente do início ao fim, o fato desta presença de tela emanar uma força junto ao olhar do espectador é algo nada desprezível (e que compensa o fato de que sua companheira de tela, Markéta Irglová, seja pouco mais do que uma presença simpática).

Precisaríamos passar a seguir para algo que até pode ser considerado um elemento “fora da tela” por alguns, mas que não me parece ser o caso. Afinal, Apenas Uma Vez revela um olhar para uma determinada realidade da Europa ocidental bem poucas vezes filmada com a delicadeza de aproximação aqui demonstrada: o mundo dos marginais, não no sentido estrito do fora da lei, mas principalmente dos personagens à margem – que é como vemos o casal principal, quase invisível em seus passeios em meio às ruas e ônibus de Dublin. Não é questão de dizer que este é um universo desconhecido, mas sim que ele aparece aqui com sua condição marginal afirmada como algo essencial ao seu entendimento, mas ao mesmo tempo sem se tornar marionetes de um discurso “sociológico” (pensamos em Ken Loach, sim). A forma como John Carney demonstra sua sensibilidade para esta parcela de sua narrativa é extremamente discreta e tem a ver com pequeníssimos detalhes, como a formação da “comunidade imigrante” no apartamento em que a moça mora com sua mãe; ou com o espaço da casa e da oficina do pai do protagonista. Da mesma forma, o espaço das ruas é muito forte no filme, principalmente num certo número musical cantado por ela enquanto anda pelo seu bairro.

E eis que, perambulando por características fortes do filme, chegamos apenas no final do terceiro parágrafo ao termo mais central para Apenas Uma Vez: “musical”. Sim, porque se há no filme um considerável carisma do seu protagonista e uma presença forte e pregnante do espaço geográfico-social onde ele é filmado que garantem a ele já um interesse acima do medíocre, sem a música de fato não haveria Apenas Uma Vez. Para John Carney esta sim é uma verdadeira profissão de fé: seu filme irá somente até onde a força da música o levar. Mas, que fique claro: por “força da música” entende-se aqui não simplesmente a qualidade das canções apresentadas, embora isso seja capital (e, aliás, estão bem acima da média na maior parte), mas principalmente uma aposta mesmo de que a interpretação de canções é um ato de tal maneira forte e cativante que, não apenas pode unir estes dois personagens (e os vários outros que vão se juntando a eles, como a banda no estúdio ou o pai do músico, em cenas particularmente bonitas), como pode unir irremediavelmente o espectador ao filme na tela. Este é o grande “ame-o ou deixe-o” do filme de Carney: ou você acredita que uma pessoa interpretando uma música pode ser um evento comovente em si mesmo, ou você não poderá tomar parte em Apenas Uma Vez.

Com estas três características fortes (presença de ator, ambiente, música), Apenas Uma Vez apresenta suas cartas, e deixa o caminho aberto ao espectador/critico: a você cabe decidir se estas forças e potências, que são absolutamente cinematográficas a partir do momento em que fazem parte de um objeto fílmico, o seduzem; ou se sua ineptude quase total com a câmera e a edição se constituirão em obstáculos intransponíveis para a apreciação do filme. E a opção de cada um dirá sempre mais de quem vê do que do filme que se coloca na tela, quase cristalino em suas qualidades e defeitos.

Maio de 2008

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