in loco - cobertura dos festivais
Olhe Pra Mim de Novo,
de Kiko Goifman e Claudia Priscila (Brasil, 2011)

por Thiago Brito

O mundo e um homem

A história de Sylvyo Lucio, a lésbica que decide por uma operação transexual, de forma a dar conta de sua interioridade masculina (nas palavras do personagem), é, sem dúvidas, extraordinária. Ao expandir o escopo para tratar das dificuldades que sua decisão acarretou em sua vida, onde problemas com familiares, amigos e afins afloram e deixam explícitos certos estados de irreconciliações e preconceitos compartilhados socialmente, o filme abre a possibilidade de uma imersão subjetiva bem intrigante. Sylvyo Lucio não quer apenas ser aceito, quer a possibilidade de ter um filho seu com sua mulher, Widna - um filho que venha tanto de seu óvulo quanto do dela. Para isso, ele se lança numa viagem pelo Nordeste, até achar um medico que aceite ou sustente a plausibilidade de seu sonho.

Esta viagem, no filme, assume um tom tanto realista (de fato é uma viagem) quanto metafórico, nos planos de estrada nos quais vemos Sylvyo Lucio caminhando sozinho: esta viagem de Sylvyo é um esforço pessoal atrás daquilo que almeja, que deseja, e ele não irá desistir até ir a todos os lugares, todos os espaços, e ouvir todas as respostas. Com uma prerrogativa dessas, o maior motivo de estranheza no filme de Kiko Goifman e Claudia Priscila é a aparente crença de que ao filme é necessário mais do que seu protagonista. Para um filme claramente pautado por um personagem de fortíssima personalidade, como o transsexual Sylvyo Lúcio, é de se intrigar a razão pela qual os diretores volta e meia abandonem seu protagonista e busquem, em outras histórias (como a família em que as filhas nasceram com uma rara condição genética, ou a mãe que depois de anos descobriu que seu filho foi na verdade trocado na maternidade), ecos que sustentem a narrativa principal.

Em tudo, é extremamente tocante o encontro entre Sylvyo e sua filha, que não consegue compreender a necessidade de Sylvyo em trocar de sexo. O encontro é belo, posto que sincero: vemos pai e filha discutindo abertamente, abrindo o jogo e expondo as diferenças, cujos traços nenhum argumento “politicamente correto” consegue apagar, as posições que tomamos diante do mundo e que nos distanciam: diferentes. No entanto, ao buscar "elevar" seu conteúdo a uma categoria mais abertamente combativa, aliando à história pessoal de Sylvyo Lúcio uma tênue vontade de "desmascarar" os preconceitos e dificuldades que encaram aqueles que nasceram "diferentes", o filme enfraquece consideravelmente essa força evidenciada no encontro entre pai e filha.

Sem se decidir entre um mergulho completo na vida e personalidade de Lúcio e uma vontade de escancarar (ou mesmo chocar) os atavismos de práticas sócio-excludentes, Goifman e Priscila impossibilitam um desenvolvimento mais contundente de sua narrativa. É como se, diante do homem e as questões que pairam no mundo, desconfiassem que não exista um liame profundo que os ligue, e, trabalhando como se fossem apenas duas forças paralelas, terminam por nunca conseguir conciliá-los.

Outubro de 2011

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